O Trabalho em Matadouros e suas Consequências na Saúde Mental
No que nos interessa, o trabalho em matadouros pode ser estudado sob o prisma da violência institucionalizada e legitimada de exploração e morte de outros seres vivos para a produção de alimento [1] ou sob o enfoque dos criminosos abusos perpetrados diuturnamente contra os animais por funcionários flagrados em vídeos investigativos. [2] Esta matança autorizada e exigida de, no mínimo, 1,2 trilhão de animais anualmente para consumo de suas carnes [3] contudo, não acarreta dor e sofrimento apenas aos animais, mas também àqueles indivíduos que os matam e os processam. Obviamente, o impacto negativo na saúde física e mental destes trabalhadores resta por piorar ainda mais as miseráveis condições de vida dos animais de fazenda, justificando assim, pesquisas mormente sobre os efeitos psicológicos desta traumática atividade laboral.
Estima-se que mais de 600 mil brasileiros trabalhem na indústria da carne, abatendo mais de 6 bilhões de animais, todos os anos, entre frangos, porcos e bois. [4] Para além dos sérios riscos de lesões, com frequentes amputações ocorrendo semanalmente, em longíssimos turnos de trabalho, em ambientes frios, úmidos, barulhentos e sujos; verdade é que, o corte, esfola e fervura de animais conscientes ou inconscientes causa conflitos psicológicos profundos e problemas na saúde mental nesses empregados.
Processo de adaptação ao trabalho e seus estágios
Indiscutivelmente, o processo de adaptação ao trabalho principia-se pelo trauma inicial com a primeira morte. Há uma mudança de identidade do indivíduo ao tornar-se um matador. Pesadelos recorrentes caracterizam o intenso choque mental da primeira matança. Seguem-se ainda, relatos de culpa e vergonha (não há orgulho em identificar-se como matador em abatedouros), medo e paranoia, com alterações de personalidade, tornando-os mais agressivos.
Após, para permitir que continuem desempenhando suas funções, constam tentativas de encontrar-se algum mecanismo de enfrentamento. Em que pese a religião sinalizar positivo refúgio para lidar com a situação da matança de seres inocentes, verdade é que o desajuste e a desadaptação prevalecem mesmo depois do manejo de estratégias malsucedidas para encarar o abate, ad exemplum, distanciamento emocional, automedicação com drogas e álcool e externalização da violência. Aliás, a perpetração de violência dá-se especialmente no contexto doméstico.[5]
Enfim, quando esses mecanismos regulatórios falham, sobrevém a crise psicológica.
Impactos na Saúde Mental
Nada obstante a escassez de pesquisas, alguns estudos nos Estados Unidos, Austrália, Irlanda, África do Sul, Turquia e ainda, no Brasil entremostram que, os trabalhadores de matadouros apresentam maiores taxas de transtornos mentais em comparação com a população geral e outras profissões, mesmo aqueloutras desprestigiadas e “sujas” (segundo os estudos: zeladores, cuidadores domiciliares etc.). E, notadamente, a predominância de problemas de saúde mental concentra-se naqueles empregados do chão do abate e também, dos load outs (manuseio das carcaças), diversamente do que se verificou em outros profissionais que lidam com animais – vivos ou mortos – como fazendeiros e açougueiros.
Há um crescente corpo de evidências de que os trabalhadores de matadouros exibem sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) que justificam atenção clínica. Caracterizado como estresse traumático induzido por perpetração – forma de TEPT em que a pessoa está envolvida na criação da situação traumática – revela-se a partir de pesadelos, flashbacks e culpa relacionada ao ato de matar. A sintomatologia é debilitante inclusive, pelo abuso de substâncias entorpecentes para permitir a continuidade do desempenho de suas funções.
A matança ou desmembramento intencional de animais tem um impacto no bem-estar desta força de trabalho. Estudo apontou que, funcionários de matadouros têm prevalência de depressão até quatro vezes maior que a média nacional, [6] além de níveis elevados de ansiedade. E, especialmente aqueles que atuam no setor de corte possuem taxas significativamente maiores de depressão e ansiedade em comparação com outras funções do próprio matadouro.
A desumanização, a repressão das emoções impeditivas à conclusão das tarefas, a conformidade a uma masculinidade hegemônica tóxica, apta ao específico ato de matar animais, impõem níveis mais baixos de bem-estar psicológico e estresse.
A dissonância cognitiva entre a necessidade de realizar o trabalho e a repulsa natural à violência repercute inclusive, na conduta destes indivíduos. Há evidências de maior propensão à agressividade – agressão física, raiva e hostilidade – tanto no ambiente de trabalho quanto no doméstico, com mulheres apresentando índices ainda mais altos que os homens, bem como comportamentos antissociais, psicoticismo e somatização. [7]
No que concerne prioritariamente àqueles comportamentos criminosos, despontaram também, indicativos de correlação entre trabalho em matadouros e maior incidência de agressão sexual. Nada obstante a autoseleção para esse tipo de emprego possa explicar tais comportamentos criminosos (pessoas com predisposições psicológicas buscam o chão do abate como mister) fato é que, há indícios sobre uma relação desta profissão com crimes violentos. [8]
Para mitigar os impactos na saúde mental dos trabalhadores em matadouros, com provável melhoria das desgraçadas condições de vida e morte de incontáveis animais, enquanto não se evolui para o Abolicionismo Animal, algumas intervenções se fariam necessárias, por exemplo, supervisão clínica para funcionários objetivando detectar precocemente problemas de bem-estar mental; programas de apoio psicológico; inspeções independentes [9] das instalações de matadouros que incluíssem funcionários e correlacionado suporte; investimento em estudos longitudinais e meta-análises etc. Seria um mínimo protocolo para buscar respeitar-se o bem-estar dos animais explorados, humanos e ainda, não humanos.
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Referências bibliográficas
[1] PANCHERI, I.; CAMPOS, R. Crime De Maus-tratos A Animais E Abate Humanitário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
[2]MERCY FOR ANIMALS. Undercover Investigations Disponível em: https://mercyforanimals.org/investigations/ Acesso em: 07 abril 2025.
[3] SENTIENT FOOD. How Many Animals Are Killed for Food Every Day? Disponível em: https://sentientmedia.org/how-many-animals-are-killed-for-food-every-day/ Acesso em: 07 abril 2025.
[4] REPÓRTER BRASIL. Fábricas de Acidentes. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2024/07/Fabricas-de-acidentes Acesso em: 31 março 2025.
[5] SLADE, J., & ALLEYNE, E. (2021). The Psychological Impact of Slaughterhouse Employment: A Systematic Literature Review. Trauma, Violence, & Abuse, 24(2), 429-440.
[6] LANDER L., SOROCK G. S., SMITH L. M., STENTZ T. L., KIM S. S., MITTLEMAN M. A., PERRY M. J. (2016). Is depression a risk factor for meatpacking injuries? Work, 53(2), 307–311.
[7] SLADE, J., & ALLEYNE, E. (2021). The Psychological Impact of Slaughterhouse Employment: A Systematic Literature Review. Trauma, Violence, & Abuse, 24(2), 429-440.
[8] SINCLAIR, U. The Jungle. (1st edition, 1906). New York, Dover Publications, 2021.
[9] Cf. Lei 14.515/2022 (Lei do Autocontrole) e ADI 7351, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação e Afins contra a Lei do Autocontrole.