A proibição da guarda em crime de maus-tratos contra cães e gatos
A Lei n°. 14.064/2020, conhecida como “Lei Sansão”, alterou a Lei n.º 9.605/1998 — Lei de Crimes Ambientais (LCA), para acrescentar o parágrafo 1.º - A, ao artigo 32, trazendo uma qualificadora para os crimes cometidos contra cães e gatos, alterando as penas do caput.
O parágrafo 1º-A, além de estipular pena privativa de liberdade (reclusão, de dois a cinco anos) e pena pecuniária (multa), igualmente impõe, cumulativamente, a pena de “proibição da guarda”, cuja natureza jurídica é de pena restritiva de direitos.
A primeira problemática encontra-se na interpretação sobre a abrangência dessa pena. Por proibição da guarda, entende-se que o condenado perde o direito de tutela apenas do animal vítima do crime? Ou, de forma mais ampla, esse impedimento abrangeria inclusive a guarda de qualquer outro cão ou gato?
Parece razoável que a interpretação da pena contida no parágrafo 1.°-A, do art. 32 da LCA, baseie-se no determinado na Constituição Federal de 1988, que ao vedar a prática cruel contra os animais (art. 225, § 1.º, VII), impõe de forma muito clara a proteção da vida do animal não humano e a obrigação da garantia do seu bem-estar, reconhecendo, dessa maneira, a vida animal com um fim em si mesmo. Sendo assim, a proibição da guarda deve ter como objetivo preservar a vida e evitar o sofrimento dos animais, que são os beneficiados com a norma constitucional.
Partindo desse ponto, temos que o Estado, em razão dos deveres de proteção aos animais aos quais está vinculado, não pode omitir-se ou atuar insuficientemente na efetivação e defesa de tal direito, sob pena de incidir em violação à ordem jurídico-constitucional.
Diante disso, atendendo ao princípio da proibição de insuficiência de proteção, conclui-se que a “proibição da guarda” não deve se limitar unicamente à guarda do cão ou do gato maltratado, sob pena de não se atender ao fim exigido pelo artigo 225 da CF, que é assegurar a garantia de uma existência livre de crueldade.
Com base na própria interpretação gramatical legislativa, é perceptível que o termo "proibição da guarda" se refere a uma ampla definição de vedação, o que nos leva a concluir que a vedação abrange tanto a guarda de cães ou gatos que foram vítimas de maus-tratos quanto a todos os cães e gatos tutelados pelo autor do delito, ainda que não tenham sido vítimas do crime.
A proibição da guarda deve ser estendida, inclusive, a novos cães e gatos que possam ser tutelados pelo autor do delito, uma vez que o infrator que usou de violência contra um determinado animal, poderá repetir o ato contra outros animais.
Desse modo, não há outra interpretação possível para assegurar uma tutela efetiva, ou minimamente eficaz, constitucionalmente exigida no artigo 225, § 1.º, VII, da CF, que não a proibição da guarda de todos os animais que detém o réu quando da sentença condenatória, assim como a proibição do autor condenado tutelar novos cães ou gatos.
A segunda questão que surge ao se analisar a pena de "proibição da guarda" é a lacuna temporal. Qual o prazo para a proibição da guarda?
Em relação aos cães e gatos que o réu detinha no momento da sentença, parece óbvio que a proibição da guarda deve se dar definitivamente. A questão a ser debatida deve ser no sentido do prazo estabelecido para a proibição da guarda de novos cães e gatos.
Não há na Lei 9.605/98, disposição expressa especificando o prazo de duração da pena “proibição da guarda”, e, em se tratando de pena restritiva de direitos autônoma, deveria ter seu quantum estabelecido, como ocorre, no artigo 1.º da Lei Estadual Paulista n.º 16.308/16, que dispõe sobre a pena de proibição da guarda de animais às pessoas que cometerem maus-tratos a animais domésticos, in verbis:
Artigo 1º — Fica proibida de obter a guarda do animal agredido, bem como de outros animais, toda pessoa que comprovadamente cometer maus-tratos contra animais domésticos que estejam sob sua guarda ou de outrem.
Parágrafo único — O agressor poderá ter a guarda de um animal doméstico após o decurso de 5 (cinco) anos contados da agressão cometida, reiniciando-se a contagem do prazo se outra constatação de maus-tratos foi apurada. (grifo nosso)
Depreende-se, pois, a necessidade de fixação do quantum para a pena de proibição da guarda, disposta no § 1.°-A, do art. 32 da LCA. Desta feita, enquanto não há a fixação de tal prazo, é forçoso recorrer ao determinado no artigo 55 do Código Penal (CP), cumulado com o artigo 7.º, parágrafo único, da Lei de Crimes Ambientais. Vejamos:
Código Penal: Art. 55. As penas restritivas de direitos referidas nos incisos III, IV, V e VI do art. 43 terão a mesma duração da pena privativa de liberdade substituída, ressalvado o disposto no § 4 o do art. 46.
Lei 9.605/1998: Art. 7º (…) Parágrafo único. As penas restritivas de direitos a que se refere este artigo terão a mesma duração da pena privativa de liberdade substituída.
À vista disso, aplica-se a regra da pena restritiva de direitos quando substitui a privativa de liberdade. Como resultado, a pena de proibição da guarda deverá ter a mesma duração da pena privativa de liberdade aplicada.
Em caso de descumprimento injustificado da pena imposta, o condenado deverá responder pelo crime do artigo 359 do Código Penal - Desobediência à decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito - já que a sanção penal não pode ser convertida em pena privativa de liberdade, pois não estamos falando de uma pena restritiva de direitos de natureza substitutiva que permitiria tal conversão, como determina o artigo 7.o, I, da Lei 9.605/98, mas de uma pena autônoma de caráter cumulativo.
Da absolvição do réu e devolução da guarda do animal
Com a absolvição do réu deve-se proceder à devolução da guarda do animal? A absolvição de um acusado pode ocorrer por vários motivos, por isso, a indicação da causa da sentença absolutória é quem determinará seus efeitos.
Pautando-se no que determina a Constituição Federal, em seu art. 225, § 1.º, VII, que coloca a proteção animal como máxima, conclui-se que a devolução da guarda só poderá ocorrer desde que fique provado a inexistência da autoria, ou a inexistência da materialidade do fato (art. 386, Código de Processo Penal).
Não obstante essas hipóteses, é de se supor que o assunto deva ser debatido no âmbito cível, com base nos artigos 66 do Código de Processo Penal e 935 do Código Civil.
Posto isto, no caso de a absolvição do réu se dar por insuficiência de provas ou por ausência de provas, o resultado no âmbito criminal não fará coisa julgada na esfera civil ou mesmo administrativa, o que permite ao Estado ou a quem esteja na tutela do cão ou gato, recorrer às vias cíveis para salvaguardar a vida do animal.
Da proibição da guarda nos acordos de não persecução penal
A Lei n.º 13.964/2019, conhecida como “Pacote Anticrime”, introduziu ao Código de Processo Penal o artigo 28 -A para instituir o Acordo de Não Persecução Penal — ANPP, que poderá ser proposto pelo Ministério Público quando verificado que há indícios de autoria e materialidade de crime com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, praticado sem violência ou grave ameaça, tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente o delito. Cumprindo o agente da infração penal todas as condições determinadas no ANPP, o Parquet requererá o arquivamento do feito.
A Lei Sansão, ao majorar a pena do crime de maus-tratos cometido contra cães e gatos, teve como objetivo assegurar uma maior proteção aos animais e obstar ao agente do delito o acesso a benefícios e medidas despenalizadoras. Por isso, o entendimento sobre o cabimento do ANPP para crimes de maus-tratos contra cães e gatos não é pacífico.
Sem adentrar no mérito do cabimento ou não do ANPP para crime de maus-tratos contra cães e gatos, uma vez que o Ministério Público vem se utilizando de tal instituto para o delito em questão, imperioso se faz que uma das condições para a celebração do acordo seja a proibição em definitivo da guarda dos animais sob a tutela do investigado, e a vedação de ele tutelar novos cães e gatos.
De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, um dos objetivos do ANPP é a antecipação e certeza da resposta punitiva. Dessa forma, a determinação da “proibição da guarda” (pena a que o agente seria condenado), sob essa perspectiva, revela-se medida necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do delito.
Destarte, infere-se ser inconcebível proceder à devolução da guarda dos animais ao indiciado, na medida em que não houve exame de mérito e cognição sobre o crime de maus-tratos, e, de outro modo, houve a confissão do crime, ainda que circunstancialmente.
Apesar de o cumprimento do ANPP extinguir a punibilidade, assim como outros institutos despenalizadores, isso não significa que o investigado não tenha praticado o crime de maus-tratos. Logo, devolver a guarda do cão ou gato pode colocar em risco a vida do animal.
Para que o ANPP possa se mostrar minimamente suficiente para a reprimenda e prevenção do crime de maus-tratos contra cães e gatos, além da proibição da guarda (inclusive de novos animais), deve o acordo também prever que o investigado custeie a alimentação e os cuidados médico-veterinários, até que o cão ou gato seja adotado, com base no art. 28-A, V, do CPP.
Sob este prisma, se bem utilizado, o ANPP pode ser uma ferramenta eficaz para assegurar uma maior eficiência e celeridade na reprimenda de infrações penais e reparação do dano ambiental, atendendo, dessa forma, ao objetivo perseguido pela tutela constitucional e reforçado na esfera infraconstitucional através da Lei 9.605/98, que é assegurar que o animal não seja submetido a crueldade.
Malgrado o Ministério Público siga propondo o ANPP para a infração do § 1.º - A, do art. 32, da LCA, parece evidente que a depender da violência empregada no caso concreto contra o cão ou gato (violência sexual, tortura, emprego de veneno, fogo, explosivo, afogamento, ou outro meio insidioso, ou cruel), não é possível a celebração do referido acordo, uma vez que, pelas circunstâncias do crime, não será suficiente para a reprovação e prevenção do delito.
Conclusão
A pena de “proibição da guarda”, prevista no §1.º-A, do artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais, introduzido pela Lei n°. 14.064/2020, por ser genérica, carece de interpretação jurídica, tanto no que concerne a sua abrangência, quanto ao lapso de proibição, mas a hermenêutica jurídica aplicada deve sempre buscar efetivar o mandamento constitucional de preservar a vida animal não humana.
Dado isso, a vedação da guarda deve incidir sobre todos os cães ou gatos que disponha o réu quando da sentença condenatória (mesmo sobre aqueles que não sofreram maus-tratos), além da proibição de tutelar novos cães ou gatos, sob pena de não se atingir o fim pretendido pela Lei Sansão, que é justamente prevenir os maus-tratos.
Não obstante, a controvérsia sobre o cabimento do ANPP para crimes de maus-tratos contra cães e gatos — e, no caso, parece inquestionável o não cabimento quando se tratar de crime praticado contra o animal por meio insidioso ou cruel — considerando que o Ministério Público vem propondo o referido acordo, conclui-se que, para que tal instrumento de justiça penal negocial seja minimamente eficaz e atinja o fim pretendido, deve ser cláusula obrigatória e indeclinável a proibição em definitivo da guarda dos animais sob a tutela do indiciado pelo delito, tal como a vedação de tutelar novos cães e gatos.
O escopo da pena de proibição da guarda não é outro senão assegurar que cães e gatos não sofram crueldade, e devido à condição de hipervulnerabilidade dos animais, o Estado deve sempre primar por uma avaliação mais rigorosa quando se tratar da devolução da guarda do animal. Nem mesmo a absolvição do réu, por si só, pode servir de motivação para a restituição da tutela do cão ou gato, que por precaução só obrigar-se-ia nas hipóteses de inexistência da autoria, ou de inexistência da materialidade do fato.
_____________________
Referências bibliográficas
FRARE, Agda R. F. “A proibição da guarda em crime de maus-tratos contra cães e gatos”. In: FERREIRA, Pedro; TOLEDO, Maria Izabel. (org.). Direito Penal dos Animais Não Humanos: reflexões hispano-brasileiras. 1ª ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2023. p. 171- 182.