O princípio da universalidade dos direitos animais

A preocupação em se definir o universo de animais incluídos na comunidade moral, passíveis de consideração ética e de serem tratados segundo critérios de justiça, é marcante em toda a história da filosofia relacionada com o tema.

Considerando o fundamento fático do Direito Animal – a consciência animal –, deduzido do art. 225, § 1º, VII, da Constituição, a partir da proibição da crueldade contra animais, pode-se afirmar que todos os animais conscientes (e, por isso, sencientes) podem titularizar situações jurídicas, inclusive protagonizando processos como partes (capacidade processual lato sensu).

Não se pode reduzir a abrangência subjetiva do Direito Animal para grandes primatas ou para animais de estimação, porquanto essa distinção não é autorizada constitucionalmente: todos os animais conscientes – capazes de serem impactados pela crueldade humana – são tutelados pela regra constitucional proibitiva e pelo princípio da dignidade animal. 

Os autores que defendem direitos e personalidade jurídica para os grandes primatas, como gorilas e chimpanzés, geralmente o fazem por razões pragmáticas, ou seja, como estratégia inicial para a atribuição de direitos a animais, sem descartar a possibilidade de extensão para outros grupos. Nesse sentido é conhecida a posição do saudoso Steven Wise [1] e, no Brasil, de Alfredo Migliore. [2]

A Constituição não faz distinção de espécies ao proibir a crueldade contra animais, de maneira que não pode o intérprete fazê-la. É dessa ausência de discriminação de espécies animais na Constituição que provém o princípio da universalidade.

O princípio da universalidade já foi incorporado em leis estaduais e municipais, de modo que não há dúvida quanto à sua positividade no ordenamento jurídico brasileiro. 

No plano estadual, é notável a Lei 18.031/2022, que alterou a Lei 15.226/2014 (Código Estadual de Proteção aos Animais do Estado de Pernambuco), para incluir, expressamente, um art. 1º-A, o qual cataloga os princípios da proteção animal, dentre os quais, o “princípio da universalidade da proteção”, segundo o qual, “todos os animais sencientes, vertebrados e invertebrados, são protegidos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pela Constituição do Estado de Pernambuco de 1989 e pelas políticas públicas de proteção aos direitos dos animais” (inciso II).

No plano municipal, destaca-se o precursor art. 5º, II, da Lei 3.917/2021, do Município de São José dos Pinhais/PR, segundo o qual “todos os animais, vertebrados e invertebrados, no âmbito territorial do Município de São José dos Pinhais/PR, são protegidos pela política municipal de atendimento dos direitos animais”.

Consequentemente, considerando a classificação taxonômica-zoológica, todos os membros do Filo Chordata, Subfilo Vertebrata (mamíferos, aves, peixes, anfíbios e répteis), estão, inequivocamente, abrangidos pelo Direito Animal e são sujeitos de direitos fundamentais, podendo demandar em juízo, pois todos são dotados de consciência. [3] 

E os demais animais da constelação zoológica? Os invertebrados seriam desprovidos de dignidade e de direitos fundamentais? Em outras palavras: esses seres vivos devem continuar a ser tratados como coisas, podendo ser submetidos a práticas violentas e cruéis?

Considerando que a Constituição não distingue espécies animais, atribuindo, universalmente, a proteção contra a crueldade, a exclusão dos animais invertebrados no âmbito subjetivo da respectiva regra proibitiva e do princípio da dignidade animal, demanda prova científica de que esses animais, ou parcela deles, não têm consciência.

O problema é que essa prova científica da não-consciência dos animais invertebrados não existe ou é apenas indiciária.

Pelo contrário, cada vez mais a Ciência avança para afirmar que muitos animais invertebrados são seres dotados de consciência e, por consequência, da capacidade de sentir e de sofrer. [4]

 A própria Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos, de 2012, é explícita em dizer, com destaque nosso, que “o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.” [5] Polvos, como se sabe, são invertebrados aquáticos pertencentes ao Filo Mollusca, Classe Cephalopoda, considerados animais notavelmente inteligentes. 

Segundo o neurologista e escritor Oliver Sacks, “Os polvos podem ser domesticados em certo grau, e muitos de seus cuidadores sentem empatia com eles, algum tipo de proximidade mental e emocional. Podemos debater se é certo ou não usar a palavra ‘consciência’ quando se trata de cefalópodes, mas, se alguém admitir que é possível que um cão tenha algum tipo significativo e individual de consciência, terá de admitir que os cefalópodes também têm.” [6] Parece que Oliver Sacks, falecido em 2015, antecipou o roteiro do premiado filme sul-africano, My Octopus Teacher (Meu Professor Polvo), de 2020, dirigido por Pippa Ehrlic e James Reed (produção Netflix).

Por razões como essa – pelos ensinamentos deixados pelo Professor Polvo –, o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba – a primeira lei estadual a catalogar direitos animais – é expresso em incluir os invertebrados no âmbito das suas considerações normativas.[7]

Note-se, portanto, que a construção do princípio da universalidade exige uma mente aberta do jurista, sem imprecisões e mitologias sobre o mundo animal, descoladas de dados e observações científicas. A Zoologia, a Neurologia e outros campos das Ciências Biológicas têm cada vez mais surpreendido o preconceito com descobertas sobre o íntimo da existência animal, inclusive em relação aos invertebrados. Em pensamento a ele atribuído, Leonardo da Vinci teria dito, mais ou menos com essas palavras, que “Chegará o tempo em que o homem conhecerá o íntimo de um animal e nesse dia todo crime contra um animal será um crime contra a humanidade.” [8]

O estado de coisas a ser promovido pelo princípio da universalidade [9] é um sistema jurídico pluriespecífico, suficientemente aberto para abranger todos os animais que possam efetivamente ser por ele beneficiados e protegidos em sua dignidade individual. O princípio, inexoravelmente, garante o acesso à justiça a todos os animais conscientes, mesmo que invertebrados, e, em conjunto com o princípio da precaução [10], concede o benefício da dúvida àqueles em relação aos quais não se tem certeza científica sobre sua consciência.

Uma das mais importantes consequências práticas do princípio da universalidade é orientar a interpretação do art. 32 da Lei 9.605/1998 (tipifica o crime contra a dignidade animal [11]), de modo a não excluir, arbitrariamente, quaisquer animais conscientes submetidos à crueldade, à violência ou a maus-tratos. Qualquer animal consciente pode ser vítima desse crime, seja doméstico, domesticado ou silvestre, seja nativo, seja exótico, não se podendo excluir, a priori, os invertebrados dotados de consciência.

Em última análise, esse princípio constitucional é um importante instrumento de combate às práticas discriminatórias especistas, inclusive dentro do próprio movimento dos direitos animais, o qual, muitas vezes, tende a limitar a sua preocupação e atuação em relação a algumas espécies (como cães e gatos), menosprezando outras (especialmente as hipervulneráveis, como as submetidas à exploração pecuária, pesqueira e científica).



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Referências bibliográficas

[1] WISE, Steven M. Animal rights, one step at a time. In: SUSTEIN, Cass R.; NUSSBAUM, Martha C. (ed.). Animal rights: current debates and new directions. New York: Oxford Press University, 2004, p. 19-50.

[2] MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa. Personalidade jurídica dos grandes primatas. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

[3] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula: SILVA, Débora Bueno. Consciência e senciência como fundamentos do Direito Animal. Revista Brasileira de Direito e Justiça, Ponta Grossa: UEPG, v. 4, n. 1, p. 155-203, jan./dez. 2020, p. 170-178 e 183-185.

[4] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula: SILVA, Débora Bueno. Consciência e senciência como fundamentos do Direito Animal, cit., passim.

[5] Declaração disponível em: https://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf. Acesso em: 21 mar. 2024.

[6] SACKS, Oliver. O rio da consciência. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 62.

[7] Cf. ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula (coord.). Comentários ao Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba: a positivação dos direitos fundamentais animais. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2024.

[8] REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Tradução: Regina Rheda. Revisão técnica: Sônia T. Felipe e Rita Paixão. Porto Alegre: Lugano, 2006, p. 25-28.

[9] Convém sempre lembrar que, segundo a teoria dos princípios de Humberto Ávila, tanto regras quanto princípios, enquanto normas jurídicas de primeiro grau, impõem ou permitem comportamentos, sendo que as regras desde logo descrevem tais comportamentos, enquanto os princípios permitem deduzir tais comportamentos a partir da definição do estado de coisas a ser promovido (todo princípio é teleológico) (ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2018).

[10] BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Fundamentos epistemológicos do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2017, p. 141-147.

[11] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; ATAIDE, Lucas Eduardo de Lara. Comentários sobre o crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998). Jus Navigandi, Teresina, nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86787/comentarios-sobre-o-crime-qualificado-de-maus-tratos-contra-caes-e-gatos-art-32-1-a-lei-9-605-1998#:~:text=Al%C3%A9m%20da%20pena%20privativa%20de,pena%20restritiva%20de%20direitos%20(art Acesso em: 21 mar. 2024.

VICENTE DE PAULA ATAIDE JUNIOR

Pós-doutor de Direito Animal pela UFBA. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da UFPR e da UFPB (Mestrado e Doutorado). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (ZOOPOLIS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da UNINTER/ESMAFE-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Juiz Federal em Curitiba.

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