A privação de convívio como forma de abuso psicológico: reflexões sobre a divisão da guarda de animais de estimação e a Teoria do Elo
Introdução
A dissolução de vínculos conjugais frequentemente envolve disputas emocionais e patrimoniais. Nos últimos anos, com o crescente aumento das famílias multiespécie, surge também uma nova problemática: a disputa de guarda dos pets. Nesse contexto, não raro, o animal, em relação ao qual é nutrida uma relação semelhante à de filho do casal, pode passar a ser instrumentalizado por um dos tutores, como forma de “punição” ao ex-cônjuge, por meio da privação do convívio ou da imposição de restrições arbitrárias. Tal conduta, além de comprometer o bem-estar animal envolvido, também configura uma forma de abuso psicológico contra o tutor afetado.
Deve-se analisar juridicamente o fenômeno da privação de convívio como forma de violência psicológica no âmbito das disputas de guarda de animais de estimação, à luz da Teoria do Elo (ou Teoria do Link), que correlaciona a violência contra animais à violência interpessoal, e discutir medidas de intervenção adequadas.
1. O animal de estimação no contexto jurídico das famílias multiespécie
Apesar de ainda inexistir um regramento legal próprio para definir a classificação jurídica dos animais e regulamentar as relações jurídicas e sociais envolvendo seres de diferentes espécies, é evidente o reconhecimento da senciência dos animais, conforme se extrai interpretação da Regra Constitucional de Vedação à Crueldade Animal (CF. art. 5°, §1°, VII), infraconstitucionalmente regulamentada pelo art. 32 da Lei de Crimes Ambientais.
A proteção jurídica concebida aos animais, somada à um contexto social em que uma grande quantidade de famílias tem em sua composição membros não-humanos, trouxe à tona uma urgente necessidade de se estabelecer os direitos e deveres dos tutores de um animal de estimação diante do término de um relacionamento onde ambos exerciam a guarda.
Mesmo que ainda possam ser submetidos a situações de exploração, como compra e venda, de forma equiparada às coisas/propriedade, é evidente que a discussão sobre a guarda dos animais, membros da família, não pode ficar restrita à partilha de bens do casal, uma vez que os fatores que envolvem a definição do destino de um ser senciente e vulnerável, em relação ao qual ambos os tutores possuem forte vínculo de afetividade, diverge totalmente de uma análise de cunho meramente patrimonial.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em precedentes como o REsp 1.713.167/SP, já destacou que animais de estimação possuem valor sui generis, não equiparável a bens patrimoniais. Assim, a discussão sobre guarda e convivência deve levar em consideração o bem-estar animal e o vínculo afetivo estabelecido:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. ANIMAL DE ESTIMAÇÃO. AQUISIÇÃO NA CONSTÂNCIA DO RELACIONAMENTO. INTENSO AFETO DOS COMPANHEIROS PELO ANIMAL. DIREITO DE VISITAS. POSSIBILIDADE, A DEPENDER DO CASO CONCRETO.
1. Inicialmente, deve ser afastada qualquer alegação de que a discussão envolvendo a entidade familiar e o seu animal de estimação é menor, ou se trata de mera futilidade a ocupar o tempo desta Corte. (...)
3. No entanto, os animais de companhia possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada. Dessarte, o regramento jurídico dos bens não se vem mostrando suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão atinente à posse e à propriedade. (...)
6. Os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente - dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado.
7. Assim, na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal.
8. Na hipótese, o Tribunal de origem reconheceu que a cadela fora adquirida na constância da união estável e que estaria demonstrada a relação de afeto entre o recorrente e o animal de estimação, reconhecendo o seu direito de visitas ao animal, o que deve ser mantido. (...)
Assim, diante da lacuna legislativa existente acerca da regulamentação dos direitos e deveres da família multiespécie e das crescentes demandas judiciais sobre a estipulação da guarda de animais de estimação, passou-se a aplicar, em âmbito jurisprudencial e com base na analogia, as regras relacionadas ao Direito de Família tradicional como mecanismo de suprir essa necessidade da realidade social atual, podendo-se estabelecer a fixação da guarda em unilateral ou compartilhada.
Ocorre que devido à inexistência de legislação específica, têm-se um evidente cenário de insegurança jurídica, onde muitos tutores desconhecem seus direitos em relação ao exercício da guarda do animal pós-término, e quando acionado o judiciário, as decisões concedidas podem ser conflitantes.
Esta situação propicia a ocorrência de abusos, que devem ser cuidadosamente combatidos pelo Poder Judiciário em âmbito processual.
2. A privação do convívio com o animal como forma de abuso psicológico
Quando, no contexto de dissolução conjugal, um dos ex-cônjuges impede ou dificulta injustificadamente o convívio do outro com o animal de estimação, há um desvio da finalidade do exercício da guarda. O objetivo passa a ser a retaliação, a punição e o exercício de poder psicológico sobre o ex-parceiro, configurando uma forma de violência psicológica, prevista no art. 7º, II, da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), na medida em que causa sofrimento emocional e limita o direito da vítima à convivência com o ser com o qual mantém vínculo afetivo profundo.
Essa conduta é ainda mais grave porque, ao utilizar aquele filho não-humano como instrumento de chantagem emocional, atinge-se não apenas a pessoa envolvida, mas também o próprio animal, que sofre com a alteração abrupta da rotina e com o rompimento de laços afetivos significativos.
3. A Teoria do Elo e a relação com a manipulação da guarda exercida pelo ex-cônjuge ou ex-convivente
A Teoria do Elo (ou Teoria do Link) é resultado de pesquisas científicas desenvolvidas desde a década de 1970, especialmente nos Estados Unidos, que apontam uma correlação direta entre maus-tratos a animais e violência interpessoal, incluindo violência doméstica, e outros tipos de abuso de vulneráveis.
Estudos demonstram que o sofrimento animal pode ser utilizado como mecanismo de controle e intimidação dentro de relações abusivas. Assim, privar o ex-cônjuge do convívio com o pet, ou mesmo ameaçar prejudicar o animal, constitui uma forma de prolongar a violência psicológica mesmo após o término da relação.
Portanto, a teoria do elo fornece subsídios científicos para se compreender que a manipulação da guarda de animais não é uma questão meramente patrimonial ou afetiva, mas sim uma expressão de violência e abuso psicológico.
4. Análise fática e conclusão
Diante da constatação de que a privação do contato com o animal é usada como forma de punição, medidas judiciais podem ser adotadas para restaurar convívio, como a propositura de uma ação judicial de Regulamentação da Guarda com pedido de Tutela de Urgência.
Para fim de exemplificação, será mencionado um caso real, cujo processo em que se discute a guarda do animal ainda está em andamento, sob segredo de justiça, perante o foro de Vargem Grande Paulista/SP.
No caso, a tutora alega ter sido vítima de violência psicológica e patrimonial ao ser duramente achincalhada pelo ex-namorado e impedida de retornar para a casa onde morava com ele e o cachorrinho do casal. Após o afastamento forçado da tutora do lar, o ex-namorado se mudou de cidade, levando consigo o animal e impedindo por completo qualquer possibilidade de contato da tutora com o mesmo.
Foi registrado o Boletim de Ocorrência na Delegacia da Mulher e houve a consequente aplicação de medida protetiva. No âmbito cível, a tutora ingressou com um pedido de regulamentação da guarda, requerendo, em caráter antecedente, o compartilhamento do convívio de forma alternada.
Em defesa, o tutor alegou que tal pedido se tratava de uma estratégia de reaproximação, de forma a tentar invalidar os anos anteriores de amor, afeto e dedicação que a mesma comprovou nutrir com o animal.
Na decisão liminar, a juíza do caso entendeu que:
O boletim de ocorrência e a certidão das medidas protetivas deferidas em favor da autora, nos autos do processo nº xxxxxxx-xx.2024.8.26.0654 (ocultado para a preservação do sigilo), corroboram a narrativa sobre o rompimento conturbado do relacionamento. A privação abrupta do contato com o animal, somada à transferência unilateral deste para outra cidade, configura situação que merece pronta intervenção judicial. O perigo de dano está caracterizado pela ruptura repentina do vínculo afetivo entre a autora e o animal, circunstância que pode causar sofrimento tanto à requerente quanto ao próprio cachorro. A jurisprudência pátria tem reconhecido a possibilidade de regulamentação de guarda compartilhada de animais de estimação, considerando o vínculo afetivo construído e o bem-estar do próprio animal. Ante o exposto, DEFIRO a tutela de urgência para fixar a divisão de tempo do cachorro xxx (ocultado para preservação do sigilo) com as partes, ficando pelo período de 15 (quinze) dias com cada tutor. Considerando as medidas protetivas vigentes, a entrega e devolução do animal deverá ocorrer por intermédio de terceira pessoa de confiança de ambas as partes, a ser indicada nos autos no prazo de 5 dias.
Assim, o Judiciário e os operadores do Direito precisam estar atentos a essa realidade, aplicando instrumentos legais de proteção tanto às pessoas quanto aos animais envolvidos, uma vez que a efetividade da justiça passa pela sensibilidade em compreender que o animal de estimação é parte essencial da vida afetiva de muitas famílias, e que privar um dos tutores desse convívio, sem que haja justa motivação, é uma forma de violência que precisa ser combatida.