Entre o rigor e a flexibilização: a proteção da fauna silvestre no Código de Fauna e na Lei de Crimes Ambientais

A proteção jurídica da fauna silvestre no Brasil é marcada por avanços e por escolhas normativas que revelam ambiguidades e retrocessos. A comparação entre a Lei nº 5.197/1967, conhecida como Código de Proteção da Fauna, e a Lei nº 9.605/1998, Lei de Crimes Ambientais, expõe uma tensão central: embora a legislação mais recente tenha ampliado os mecanismos de responsabilização ambiental, ela se mostrou, em diversos aspectos, mais permissiva em relação às condutas lesivas à fauna silvestre do que a norma que substituiu.

O Código de Fauna e a centralidade da proteção da vida silvestre

O Código de Fauna, publicado em 3 de janeiro de 1967, parte de uma premissa clara: a fauna silvestre é patrimônio do Estado, sendo proibida sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha, salvo exceções estritamente reguladas. A lógica que estrutura a norma é marcadamente protetiva, priorizando a preservação da vida silvestre como valor jurídico em si.

Do ponto de vista sancionatório, o Código previa penas severas, inclusive reclusão, para diversas condutas contra a fauna, e, em sua redação original e nas alterações posteriores, não admitia fiança para crimes mais graves, reforçando o caráter repressivo e inibidor da norma. A opção legislativa era inequívoca no sentido de que crimes contra a fauna não eram tratados como infrações menores, mas como ofensas relevantes à ordem jurídica e ecológica.

Tal rigor dialogava com uma concepção menos tolerante em relação à exploração da fauna, ainda que o diploma mantivesse contradições internas, como a admissão da caça em hipóteses excepcionais e o estímulo à criação de clubes de caça, elementos que refletem o contexto histórico e cultural da época.

A Lei de Crimes Ambientais e a promessa de modernização

A Lei nº 9.605/1998 surge sob o discurso da modernização da tutela ambiental, incorporando a lógica da tríplice responsabilização (civil, administrativa e penal), ampliando a responsabilização de pessoas jurídicas e sistematizando os crimes ambientais em um único diploma. Em termos estruturais, trata-se de um avanço inegável.

No entanto, quando se analisa especificamente a proteção da fauna silvestre, o entusiasmo inicial precisa ser contido. O artigo 29, núcleo central dos crimes contra a fauna silvestre, prevê pena de detenção de seis meses a um ano, além de multa, para condutas como matar, caçar ou utilizar espécimes da fauna silvestre sem autorização. Trata-se de uma pena baixa, que classifica a maioria desses delitos como infrações de menor potencial ofensivo, abrindo espaço para transação penal, suspensão condicional do processo e substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.

Essa opção legislativa contrasta fortemente com o rigor do Código de Fauna e produz um efeito simbólico preocupante: matar animais silvestres passa a ser tratado, na prática, como conduta de baixa reprovabilidade penal.

O paradoxo punitivo e a desvalorização da fauna silvestre

Há um antagonismo normativo na Lei de Crimes Ambientais, materializado na discrepância existente entre o artigo 29, o artigo 32, caput, e o artigo 32, §1º-A, especialmente no que se refere à previsão de penas. O diploma legal estabelece respostas sancionatórias significativamente distintas para condutas que, do ponto de vista da vida e da integridade física dos animais, possuem idêntica relevância jurídica e ética.

Matar um animal, seja ele doméstico, silvestre, nativo ou exótico, assim como feri-lo ou submetê-lo a maus-tratos, são condutas que atingem o mesmo núcleo essencial de proteção jurídica: a vida e a integridade física de seres sencientes. Não há, sob essa perspectiva, fundamento razoável para a hierarquização penal promovida pela legislação, que atribui tratamentos sancionatórios distintos a ofensas que produzem lesões equivalentes ao bem jurídico tutelado. A discrepância de pena, portanto, não decorre da gravidade material das condutas, mas de uma opção legislativa que fragmenta e enfraquece a tutela penal da vida animal.

Essa incongruência torna-se ainda mais sensível quando se trata da fauna silvestre. Além da violação individual ao animal enquanto sujeito de tutela jurídica, a conduta repercute sobre o equilíbrio ecológico, a biodiversidade e a funcionalidade dos ecossistemas. A resposta penal mais branda prevista nos artigos 29 e 32, caput, quando comparada às sanções do artigo 32, §1º-A, não apenas relativiza a proteção da vida silvestre individual, como também ignora a dimensão coletiva e difusa do dano ambiental, comprometendo a coerência do sistema penal ambiental.

Mais grave ainda é o fato de que, ao permitir amplamente a substituição da pena privativa de liberdade, a Lei nº 9.605 compromete a função preventiva geral da sanção penal. Diferentemente do Código de Fauna, que operava com uma lógica de intimidação penal clara, a legislação atual aposta em uma resposta mais branda, alinhada a uma política criminal de redução do encarceramento, opção questionável quando aplicada indistintamente a crimes ambientais que afetam a biodiversidade e a própria sobrevivência das espécies.

A esse quadro soma-se outro elemento de desequilíbrio quando se analisa o tratamento conferido à exportação de produtos derivados da fauna. O artigo 30 prevê pena de reclusão de um a três anos para a exportação não autorizada de peles e couros de anfíbios e répteis em bruto, estabelecendo uma resposta penal mais severa do que aquela aplicada a condutas que envolvem diretamente a morte, a tortura ou os maus-tratos contra o animal. O sistema revela, assim, uma lógica invertida, na qual a repressão incide com maior intensidade sobre a etapa econômica da exploração, e não sobre a violência que a antecede.

Essa escolha legislativa evidencia a permanência de uma lógica patrimonial e mercadológica na proteção penal ambiental, em detrimento de uma tutela efetiva da vida e da integridade dos animais, contrariando o espírito mais protetivo que, paradoxalmente, já se fazia presente na legislação anterior.

Avanços, retrocessos e permanências

É incorreto afirmar que a Lei de Crimes Ambientais representou apenas retrocesso. Houve avanços relevantes: ampliação da responsabilização de pessoas jurídicas, integração com a tutela administrativa e maior densidade procedimental. Contudo, no que se refere à proteção direta da fauna silvestre, o saldo é ambíguo.

O que se observa é uma permanência do antropocentrismo, agora sob nova roupagem: a fauna continua sendo protegida prioritariamente em função de sua utilidade ecológica ou econômica, e não como sujeito merecedor de tutela robusta. Nesse sentido, a lei mais antiga, paradoxalmente, mostrava-se mais coerente com uma proteção forte da vida silvestre, ao menos no plano penal.

Os desafios atuais da proteção animal no Brasil

A comparação entre os dois diplomas revela um desafio central do Direito Ambiental contemporâneo: como conciliar eficiência punitiva, proteção da biodiversidade e uma política criminal racional sem banalizar os crimes contra a fauna. A resposta não passa por um retorno acrítico ao passado, mas por uma revisão crítica da Lei 9.605/1998, especialmente no que tange à valoração penal das condutas contra a fauna silvestre.

Se o Brasil pretende cumprir o mandamento constitucional de proteção da fauna (art. 225, §1º, VII, da Constituição), será necessário reconhecer que nem todo “avanço” legislativo representa, de fato, maior proteção. Em matéria de fauna silvestre, a história demonstra que, em certos aspectos, andamos para frente perdendo a firmeza que já existia, e esse é um dado que o Direito Animal não pode ignorar.

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 Referências:

 ALBUQUERQUE, Márcia Fajardo Cavalcanti de. O comércio de animais silvestres no Brasil e a Resolução CONAMA n. 457. Boletim Científico ESMPU, Brasília, ano 13, n. 42–43, p. 147–176, jan./dez. 2014.

AN OVERVIEW OF BRAZIL’S LEGAL STRUCTURE FOR ANIMAL ISSUES. Animal Legal & Historical Center. Michigan State University College of Law, East Lansing, s.d. Disponível em: https://www.animallaw.info/article/overview-brazils-legal-structure-animal-issues. Acesso em: 15 dez. 2025.

BRASIL. Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967 (Código de Fauna).

BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais).

POLLI, Rodrigo Carvalho; BLANCHET, Luiz Alberto. A discrepância entre as penas dos crimes previstos no art. 29 e 32 da Lei de Crimes Ambientais: matar ou maltratar, eis a questão. Revista Direitos Culturais, Santo Ângelo, v. 17, n. 43, p. 85–96, set./dez. 2022. DOI: 10.20912/rdc.v17i43.936.

AGDA ROBERTA FARIAS FRARE

Cofundadora do Portal Jus Animalis. Advogada. Pós-graduada em Direito Animal pela Universidade de Lisboa - Portugal. Especialista em Direito Público. Presidente do Conselho Municipal do Meio Ambiente de Amparo/SP. Presidente da Comissão de Proteção e Defesa Animal da OAB/SP – Subseção de Amparo. Membro da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Animais – OAB/SP. Vice-Presidente da Sociedade Protetora de Animais São Francisco de Assis – SOSAFRA.

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