Manifesto animalista: politizando a causa animal
Resenha de “PELLUCHON, Corine. Manifeste animaliste. Alma Éditeur, Paris, 2017”.
A violência contra os animais não-humanos é um ataque direto à natureza humana. Assim, lutar contra todos os tipos de maus-tratos animais é um ato de rebelião política contra uma sociedade que explora seres sencientes de outras espécies. Isso faz do animalismo uma questão política que diz respeito a todos. Urge, portanto, politizar a causa animal, levando o debate sobre a exploração animal para a esfera pública. É com esse propósito que a filósofa francesa Corine Pelluchon, na obra Manifeste animaliste (2017), desenvolve uma argumentação pragmática, no campo da filosofia política, que pretende apontar os caminhos para a politização do animalismo.
Corine Pelluchon é professora e doutora em filosofia prática pela Universidade de Franche-Comté, na França. É especialista em filosofia moral e política, ética aplicada e bioética. Também é autora dos livros Éléments pour une éthique de la vunérabilité. Les hommes, les animaux, la nature (2011) e Les Nourritures. Philosophie du corps politique (2015).
Na primeira parte da obra, a autora descreve diversos aspectos da causa animalista hoje em dia. Aponta o que está em jogo no ato de maltratar animais e o fato de a nossa relação com os animais não-humanos refletir a relação que os humanos travam entre si; afirma a necessidade de abrir os olhos para a realidade do sofrimento animal e de entregar-se, com generosidade, a essa luta política, compreendendo que o combate ao especismo está associado a outras formas de discriminação como o racismo e o sexismo; analisa as raízes históricas do animalismo, tomando como paralelo as lutas contra a escravidão e a luta por igualdade entre homens e mulheres; aponta os obstáculos que são impostos pelo progresso e a necessidade de inserir a causa animal em um projeto de reconstrução social e democrática, com foco em uma coexistência justa entre os humanos e os demais animais.
A segunda parte da obra aborda aspectos da politização da causa animal. A autora fundamenta a necessidade de estendermos considerações de justiça aos demais animais, com a proteção imperativa de seus interesses e com seu reconhecimento como sujeitos políticos titulares de direitos. Afirma também que para que a causa animal se incorpore à democracia, é necessário, respeitando o pluralismo e os procedimentos democráticos, ocupar a arena política com o discurso animalista, nos níveis normativo, representativo e público, para que a causa ganhe legitimidade e reconhecimento. Destaca ainda que a luta política a favor dos animais não-humanos tem duas metas, uma de logo prazo, que é o fim da exploração animal, e outra de curto prazo, que objetiva melhorar gradualmente a vida dos não-humanos e empreender uma transição para uma sociedade mais justa para eles.
Na terceira parte da obra, a autora apresenta propostas concretas que podem ser pautas da luta política pelos animais não-humanos. Em algumas delas, a autora sugere que teriam amplo consenso, como o fim da criação de animais em cativeiro, aí incluídos os circos, os zoológicos e os parques, com a substituição destes por santuários ou baías protegidas para abrigar os animais que não possam retornar ao seu meio natural; a proibição de touradas e todo o tipo de entretenimento que provoque brigas de animais não-humanos; a proibição de algumas modalidades de caça, do comércio de peles e do comércio de foie gras. Já outras propostas associadas ao fim da pecuária e do abate de animais não-humanos considerados de produção, para lograrem êxito, dependem, na visão da autora, do desenvolvimento de estratégias e alternativas econômicas a reorientar a produção e o consumo. A autora destaca ainda o papel da inovação, na cozinha, na moda e na indústria, para que as alternativas à produção e ao consumo de produtos de origem animal se consolidem. E por fim, reforça o papel da educação e da cultura como pilares dessa luta política por justiça aos não-humanos.
Trata-se de um livro enxuto, porém intenso. O pragmatismo que marca a narrativa da autora é como um choque de realidade para todos os simpatizantes da causa que se iludem com a projeção de uma transição para um abolicionismo animal sem compreender que isso exige duras batalhas no campo político, que os avanços serão lentos, e que a ampliação das conquistas passa pelo debate democrático, pela construção de uma representatividade política dos interesses animais, pela construção e aperfeiçoamento constante de normas jurídicas que melhorem gradualmente a vida dos animais e pelo desenvolvimento de alternativas econômicas tanto aos produtores quanto aos consumidores.
Ao analisar as lutas políticas pelo fim da escravidão e pela igualdade de gênero, a autora deixa claro que os avanços em favor dos animais não-humanos não podem se basear apenas em argumentos científicos ou racionais, mas demandam estratégia política. Quando afirma, por exemplo, que Lincoln soube negociar e ser estratégico em favor da abolição dos escravos nos EUA, propondo uma transição não radical para um novo modelo socioeconômico mais justo e que essa forma de agir deve servir de inspiração para o animalismo, a autora não pretende equiparar os animais humanos aos demais animais; pretende, sim, evidenciar que essa forma de atuação estratégica pode servir de exemplo para a luta pelos direitos animais.
Muito embora a autora reconheça nos animais não-humanos a condição de sujeitos políticos que titularizam direitos, por terem interesses e preferências individuais e serem capazes de expressá-las, os avanços animalistas dependem diretamente de ação política estratégica, da mesma forma como se deu no campo do humanismo, onde as conquistas e avanços por justiça se deram a partir de estratégias pautadas na distinção entre igualdade formal e real com foco nas capacidades dos indivíduos. Esse modelo pode ser replicado ao animalismo, conformando o centro da agenda de direitos que poderão ser outorgados aos animais não-humanos.
Mesmo que a narrativa seja marcada por forte pragmatismo, a autora fornece fundamentação consistente sobre o quão imoral e injusto é o fato de continuarmos tolerando inúmeras formas de violência e sofrimento aos animais não-humanos. Esses fundamentos conformam a necessidade de inserir o animalismo no centro do debate político. Por não serem propriamente uma força política, os animais não-humanos dependem dos humanos, como representantes e agentes políticos, para a defesa de seus interesses e para a construção de uma zoópolis. Inegavelmente, há um acerto da autora em tal conclusão, haja vista os exemplos vivenciados recentemente no Brasil, onde a ausência de uma representação política dos interesses animais nas casas legislativas e na esfera executiva tem conduzido a retrocessos e propostas de flexibilizações de normas protetivas por setores ligados, sobretudo, ao agronegócio ou ao entretenimento com animais. Bons exemplos disso são a emenda constitucional n° 96, que criou o parágrafo § 7º do art. 225 da CF/88, descaracterizando a crueldade da utilização de animais não-humanos em práticas desportivas que sejam consideradas manifestações culturais, e os diversos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que objetivam ampliar as hipóteses de caça de controle no Brasil.
A obra da filósofa Corine Pelluchon por certo será objeto de crítica por aqueles que acreditam ser possível convencer racionalmente a humanidade do quão injusto é o modo que exploramos os animais não-humanos e que pequenas conquistas bem-estaristas apenas legitimam a continuidade de um sistema exploratório e cruel. Entretanto, é preciso ter paciência e atuar com estratégia política, para que os avanços sejam de fatos significativos. Estratégia que gere convencimento, consenso, apresente alternativas e promova mudanças graduais que melhorem as condições de vida dos animais não-humanos e conduzam ao reconhecimento da sua condição de sujeitos políticos que titularizam interesses que devem ser levados em consideração pela agenda política. Como afirma a autora, os animalistas exaltados acabam por prejudicar a causa, pois só quando surge a compreensão de que o bem-estar dos animais não-humanos caminha junto do bem-estar humano é que a causa animalista avança, e isso exige tempo, paciência, diálogo e alternativas econômicas que facilitem essa transição.
A construção de um consenso é fundamental, portanto. E para isso, a proteção animal deverá figurar no centro da agenda política, pois não basta empilhar direitos animais se o consenso não existir. Não haverá eficácia. Para que haja consenso, a pauta animalista deve compreender que a luta política deve ser travada no plano normativo, incluindo o interesse dos animais não-humanos no pacto social; no plano representativo, por meio da eleição de representantes sérios, atuantes, comprometidos com a causa e capazes de apresentar projetos de lei que fomentem caminhos para uma transição social e econômica à exploração animal, levando em conta os interesses humanos envolvidos; e no espaço público, já que todos temos deveres de cidadania que nos obrigam a fazer todo o possível para convencer os demais da importância de integrar os interesses dos não-humanos nas considerações morais e políticas.
O manifesto animalista é uma obra que merece ser lida por todos aqueles que militam em prol dos animais. Ele fornece ao leitor, sem ilusões ou romantismos, as bases para inserir o animalismo no centro do debate político contemporâneo. Trata-se de um manifesto político, que proclama a adoção de políticas voltadas ao respeito dos direitos animais. Em certa medida, inspira-se no Manifesto Comunista de K. Marx e F. Engels, originalmente lançado em Londres em 1848, muito embora as obras de Singer (1975); Regan (2006); Fontenay (1998) e Derrida (2006) sejam fontes importantes da argumentação tecida acerca do sofrimento infligido aos animais, da sua condição como sujeitos que titularizam direitos e do histórico dessa relação de dominação e inferiorização dos animais não-humanos.
A autora, com sua argumentação, joga uma centelha de luz sobre o debate que ainda alimenta os ativistas da causa animal entre abolicionismo ou bem-estar animal. A compreensão de que uma politização da causa animal passa necessariamente por dois prazos para as conquistas no campo político, um curto e outro longo, sendo o curto o prazo das escolhas e decisões factíveis agora para melhorar gradualmente as condições de vida dos não-humanos, e o longo o prazo do fim da exploração animal, supera a contraposição entre abolicionismo e bem-estar animal que ainda limita o potencial dos avanços do animalismo no campo político.
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Referências
DERRIDA, Jacques. L’animal que donc je suis. Paris: Galilée, 2006.
DONALDSON, Sue; KYMLICKA, Will. Zoópolis: A Polítical Theory of Animal Rights. EUA: Oxford University Press, 2011.
FONTENAY, Élisabeth de. Le silence des bêtes. La philosophie à l’épreuve de l’animalité. Paris: Fayard, 1998.
NACONECY, Carlos. A Discriminação Moral contra Animais: o Conceito de Especismo. Revista Diversitas, v. 4, p. 21-53, 2016.
PELUCHON, Corine. Éléments pour une éthique de la vunérabilité. Les hommes, les animaux, la nature. Paris: Le Cerf, 2011.
PELUCHON, Corine. Les Nourritures. Philosophie du corps politique. Paris: Le Cerf, 2015.
REGAN, Tom. Jaulas Vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Trad. Regina Rheda. Porto Alegre, Lugano, 2006.
RYDER, Richard D. The Victims of Science. London: Davies Pointer, 1975.
SINGER, Peter. Libertação Animal. Tradução de Marly Winckler e Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 142.
TRINDADE, Gabriel Garmendia. Especismo e Esquizofrenia Moral: uma análise conceitual crítico-comparativa das abordagens éticas de Richard D. Ryder e Gary L. Francione. In: VIII Semana Acadêmica do PPG em Filosofia da PUCRS - Ética e Filosofia Política, 2011, Porto Alegre. Semana Acadêmica do PPG em Filosofia da PUCRS, 2011.
Notas
[1] Segundo afirma Naconecy (2016, p. 29-30), a palavra “especismo” surge pelos escritos do psicólogo Richard Ryder, na década de 1970, aproximando a noção de discriminação com base na raça à discriminação com base na espécie. Em complemento, Gabriel Garmendia da Trindade (2011, não paginado) destaca que Ryder, à época, “[...] utilizou esse termo em diferentes edições de um panfleto distribuído nos corredores da universidade de Oxford nos primeiros anos da década de 70. O panfleto em voga tinha o intuito de denunciar o comportamento discriminatório e os hábitos cruéis advindos dos seres humanos para com os membros de espécies distintas. A primeira versão do manuscrito continha diversos questionamentos visando a reflexão e objeção conscienciosa dos leitores acerca do sofrimento animal, bem como um clamor relativo a reconcepção e reposicionamento moral e científico frente aos não humanos”.
[2] Em 1975, Ryder aperfeiçoa a noção de especismo no livro Victims of Science, referindo que, assim como ocorre no racismo, no especismo também se ignoram ou subestimam os interesses semelhantes existentes entre o discriminador e o discriminado, sendo ambos – racismo e especismo – formas de preconceito e de discriminação egoísta que desconsidera os interesses e sofrimentos dos discriminados (RYDER, 1975). Peter Singer foi outro autor que se utilizou da expressão “especismo” em sua obra Libertação Animal, comparando-o a formas de discriminação e desconsideração injustificada de interesses semelhantes que violam o princípio da igualdade, como o racismo e o sexismo. Em sua obra Singer afirma: “Os racistas violam o princípio da igualdade ao conferir mais peso aos interesses de membros de sua etnia quando há conflito entre os próprios interesses e os daqueles que pertencem a outras etnias. Os sexistas violam o princípio da igualdade ao favorecer os interesses do próprio sexo. Analogamente, os especistas permitem que os interesses de sua espécie se sobreponham aos interesses maiores de membros de outras espécies. O padrão é idêntico em todos os casos” (SINGER, 2010, p. 15).
[3] Corrente da ética animal que se opõe ao bem-estarismo e que preconiza a supressão de todo tipo de exploração animal e todas as práticas que implicam o uso de animais como meios para os fins humanos.
[4] O termo “zoópolis” foi criado por Jennifer Wolch em 1998 para designar uma ética ambiental urbana que reconhece a existência de uma comunidade mista, formada por animais humanos e não-humanos. Na obra, o termo utilizado pela autora como uma proposta de comunidade política, com base na obra de Sue Donaldson e Will Kymlicka (2011), intitulada Zoópolis: A Polítical Theory of Animal Rights. Uma comunidade política onde as relações entre animais humanos e não-humanos são pautadas pelo reconhecimento de obrigações humanas e direitos dos não-humanos, na medida das capacidades de cada indivíduo.
[5] A autora conceitua a corrente ética do bem-estar animal como aquela que se limita a preconizar a melhora das condições de vida dos animais e não a supressão da exploração animal como propõe a corrente ética do abolicionismo animal.