O Direito Animal na perspectiva da decisão do STJ em reconhecê-los “ser terceiro gênero” e o projeto do Novo Código Civil Brasileiro

Direito é o conjunto de normas jurídicas que regula as condutas dos seres viventes por meio de direitos e obrigações, a fim de possibilitar que a sociedade viva em equilíbrio, buscando a paz social, através da elaboração de leis justificadas pelo anseio popular, avanço social e científico e que estejam em consonância com a diretriz Constitucional.

No campo do Direito Animal Brasileiro, a Constituição Federal assegura a proteção jurídica aos animais em seu artigo 225, § 1º, inciso VII, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar inconstitucional lei do Ceará que pretendia regulamentar a vaquejada, norma autônoma protetiva aos seres não humanos, vedando a crueldade, como forma de garantir bem-estar e assegurar o direito à vida e saúde dos animais, e que merece além de aplicação e efetividade, merece consciência social, a fim de tratá-los como seres viventes e sencientes, que possuem o direito à vida com dignidade.

Assim, o Direito Animal Brasileiro no tripé da ética, leis e ciência, caracteriza-se como o ramo do Direito que reconhece os animais como sujeitos de direitos sui generis, seres viventes dotados de função biológica, portanto seres sencientes, que sentem fome, sede, medo, frio, calor, dor e sofrimento e que possuem o direito de viver durante seu ciclo natural de vida sem sofrimento desnecessário, ou seja, os animais são seres que sentem, e não só que possuem sensibilidade.

Só que, em tese, a atual norma Civil em vigor de 2002 está desatualizada, vez que, doutrinadores interpretaram o artigo 82 de modo a tratar os animais como “coisa”, “objeto”, vejam o artigo não é expresso aos animais, foi a interpretação doutrinária, que diante a falta de regulamento específico, os colocou como bens semoventes, e reflete no Judiciário Brasileiro: Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.” [1]

Logo, diante do teor do artigo supra, situações envolvendo os animais causam embate jurídico em diversos ramos do Direito, ênfase no Direito de Família, pois no Brasil é reconhecida a família multiespécie, aquela composta por seres humanos e seres não humanos que criam laços de afetividade, e que no momento da ruptura conjugal torna-se um “problema” para o Judiciário dirimir, por questões diversas, tais como: Com quem fica o membro familiar pet? Quem é o responsável pelas despesas do familiar pet? Quem é o responsável, caso o membro familiar pet, cause prejuízo a outrem?, dentre outras questões, pois não há lógica um ser vivente senciente com proteção jurídica constitucional por sua própria existência, ser partilhado como um bem, conforme jurisprudência do TJ/SP:

Apelação cível – ação de reintegração de posse – animais de estimação – divórcio - partilha e regulamentação de guarda não realizadas – necessidade – esbulho, em princípio, não caracterizado - indeferimento da inaugural - sentença preservada - recurso improvido. (TJSP; Apelação Cível 1010243-79.2020.8.26.0100; Relator (a): Tercio Pires; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 26ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/11/2021; Data de Registro: 22/11/2021). Trecho do acórdão” Sendo adquiridos na constância do casamento, a título oneroso, cônjuges, ainda que só em nome de um dos os animais devem ser considerados bens comuns do casal até que se efetive a devida partilha, que não ocorreu por ocasião do divórcio consensual entre as partes” 

Como se vê, em tese, a interpretação doutrinária dada ao artigo 82 do atual Código Civil, em colocar os animais como “coisa”, tem representado desequilíbrio social e legal, que causa dor e sofrimento aos animais e pessoas, pois como partilhar um membro familiar?

Logo, diante da celeuma, a questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que afirmou: “animais não são coisas, nem pessoas, mas sim uma espécie terceiro gênero”, destaco as palavras do ministro Marco Aurélio Belizze REsp 1.944.228:

“(...) eventual impasse sobre quem deve ficar com o animal de estimação adquirido durante união estável, por evidente, não poderia ser resolvido simplesmente por meio de determinação da venda do pet e posterior partilha como se dá usualmente com outros bens móveis, já que não se pode ignorar o afeto humano para com os animais de estimação, tampouco a sua natureza de ser dotado de sensibilidade”. [2]

Ou seja, em tese, o Superior Tribunal de Justiça reconhece a impossibilidade de tratar o animal de estimação como um “objeto” ou “coisa”, logo, a sociedade e juristas animalistas esperavam que o projeto do novo Código Civil fosse sensível ao tema, reconhecendo sua grandiosidade e necessidade de regulamento digno para os animais e pessoas envolvidas, no tripé ciência, ética e leis.

Contudo no contrassenso da consolidação do Direito Animal Brasileiro, e decisões deste jaez pelo STJ, o Projeto do Novo Código Civil, até a presente data, não representa o anseio popular, o avanço social, científico e a diretriz constitucional, pois mantém os animais no capítulo “Dos bens móveis e Animais”, com o seguinte teor:

“...Art. 82-A Os animais, que são objeto de direito, são considerados seres vivos dotados de sensibilidade e passíveis de proteção jurídica, em virtude da sua natureza especial.

§ 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento ético adequado aos animais;
§ 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza e sejam aplicadas considerando a sua sensibilidade;
§ 3º Da relação afetiva entre humanos e animais pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão indenizatória por perdas e danos sofridos.”

JUSTIFICAÇÃO: O atual texto do art. 82 do CC dispensa aos animais o tratamento de bens móveis semoventes, o que, no entanto, não é o mais escorreito. Afinal, os animais são seres vivos e, por isso, devem contar com proteção jurídica e tratamento diferenciados.”[3]

Só que a justificação para a elaboração do artigo 82-A se contradiz com o texto apresentado, pois afirma não ser mais escorreito tratar os animais como bens móveis semoventes, reconhecendo os animais seres vivos com proteção jurídica e que merecem tratamento diferenciado, mas define-os como “objeto de direito” no “caput”, porém o reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos no campo do Direito Animal Brasileiro não compactua com a objetificação dos animais, a objetificação de vidas só atrasa o avanço social, o que inclusive pode causar das mais variadas interpretações jurídicas entre a senciência e infelizmente o especismo.

Aliás, o Projeto do Novo Código Civil não atenta às necessidades do Direito Animal Brasileiro, tanto que coloca a aplicação do artigo 82-A condicionado ao regulamento por lei especial sobre ética animal, e enquanto o regulamento não é elaborado, ficará pela subjetividade do julgador entender o que será aplicável na condição de bem ou não aos animais. O que, em verdade, possibilita ficar como está, alguns julgadores e doutrinadores entendendo os animais como bens de direito de forma pura e simples, sem atentar-se a justificação que reconhece os animais seres vivos dotados de proteção jurídica que merece tratamento diferenciado.

Como se vê, o teor elaborado para o artigo 82-A, em tese, não está condizente com a diretriz constitucional de proteção jurídica aos animais por sua própria existência, e, não representa o regulamento aguardado na legislação civilista, que deveria contemplar a descoisificação e desobjetificação dos animais de forma clara e compreensiva, bem como o reconhecimento da família multiespécie de forma expressa, o que provavelmente, nos fará continuarmos buscando decisões nos tribunais superiores.

Em verdade, o Código Civil Brasileiro em vigor carrega uma interpretação doutrinária de que animais são “coisas”, “objetos”, bens semoventes, mas nada expresso, e, infelizmente da forma que se encontra no Projeto do Novo Código Civil, em tese, teríamos de forma dúbia os animais caracterizados como “bens” de forma expressa, pois no capítulo de bens, e determinando utilizar a legislação relativa aos bens, enquanto não tivermos regulamento específico sobre ética animal, o que pode gerar uma grande confusão jurídica e interpretativa face a denominação “objeto de direito” destacada no “caput”.

O reconhecimento da relação afetiva entre humanos e animais é de extrema importância, mas tal reconhecimento não pode representar bem-estar só para o ser humano. É preciso equilíbrio, é preciso vislumbrar o Direito Animal Brasileiro, do contrário corre-se o risco de o Novo Código Civil Brasileiro “nascer” desatualizado ao tema.

Enfim, nossos animais mereciam mais, nossos animais mereciam sim um capítulo no Projeto do Novo Código Civil reservado à eles, não no mesmo capitulo de bens, talvez o melhor caminho fosse um capítulo exclusivo sobre o “ser terceiro gênero”, consubstanciado na decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.944.228, em conjunto com a interpretação do Supremo Tribunal Federal dada ao artigo 225, § 1º, inciso VII, anseio social e na ciência, reconhecendo-os sujeitos de direitos sui generis, sencientes, reconhecendo a família multiespécie, e o bem-estar animal como uma definição a partir do que seja melhor para o animal, regulamentando a guarda responsável, com visão vanguardista de se assegurar a dignidade animal e evitar o abandono. 

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Referências bibliográficas


[1] Disponível em:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm

[2] Disponível em:

https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/21052023-Animais-de-estimacao-um-conceito-juridico-em-transformacao-no-Brasil.aspx

[3] Disponível em:

//efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/2e04a747-3186-43a3-a61e-f0a5f68b8056

ARIANA ANARI GIL

Advogada. Palestrante, Consultora Jurídica, Escritora de Obras e Artigos Jurídicos. Compõe o Repositório Nacional de Mulheres Juristas no Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Membro Efetivo da Comissão Especial de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP. Coordenadora do Direito Político da Mulher na Comissão de Direito Eleitoral e Político da OAB/SP Subseção Suzano. Idealizadora de Projetos e Pesquisas sobre Direito Animal/ Direito Médico-Veterinário e da Mulher, com ênfase na estatística realizada no município de Suzano sobre a relação da Violência Doméstica e Maus-tratos aos Animais. Atuante por implementação de políticas públicas face ao Direito Animal/ Direito Médico-Veterinário e Direito da Mulher, que contempla fiscalização das ações do Poder Público e sua transparência, consubstanciada na lei de acesso.

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