Um Novo Modelo De Família: A Multiespécie
Introdução
Ao longo de toda a história, o conceito de família foi progredindo no âmbito jurídico, buscando compreender a realidade das famílias brasileiras, seja na sua composição, como na forma de surgimento, incluindo desde as famílias monoparentais ou pluriparentais, homoafetivas, até as oriundas tão somente do vínculo afetivo, dentre outras modelagens.
Nesse ínterim, a legislação brasileira no âmbito do Direito de Família está em constante avanço, entretanto, nem sempre acompanha a evolução das configurações sociais. Daí que se faz necessário a coerência dos julgadores ao analisar cada caso concreto de modelos de família, principalmente as carentes de legislação específica, sem que deixem de dar-lhes a devida proteção jurídica, como é o caso das famílias compostas por espécies distintas.
1. A evolução do conceito de família
O autor Fábio Ulhoa Coelho (2013) divide o modelo de família em três, os quais são: tradicional, que existiu até meados do século XIX, a romântica entre meados do século XIX até os anos 1960, e a contemporânea. A família tradicional baseava-se em decisões tomadas unilateralmente, pelo marido, que era considerado o chefe, o administrador e o representante da sociedade conjugal, enquanto que a mulher se dedicava exclusivamente aos afazeres domésticos e a lei não lhe conferia os mesmos direitos dos homens.
Com a existência da família romântica, o pai perde boa parte do seu poder tirânico, mas ainda continua centralizado na vida da família. O nome dado a este modelo familiar é em razão de que, com ela, iniciou-se a despatrimonialização do direito de família. O Código Civil Brasileiro de 1916 foi fruto direto desta estruturação familiar ainda com traços da família romana.
Nesta época, o Estado, não sem muita resistência, acaba por absorver da Igreja a regulamentação de família e casamento, mantendo-se a indissolubilidade do vínculo do casamento e a capitis deminutio, incapacidade relativa da mulher, bem como a distinção legal de filiação legítima e ilegítima.
A partir da metade do século XX, em uma árdua batalha legislativa, o legislador foi vencendo barreiras de cunho ideológico, sociológico, religioso, econômico e político, além de resistências, conferindo aos filhos ilegítimos, direitos, e cessando a incapacidade relativa da mulher casada, com a criação da Lei nº 4.121, de 27-08-62 (Estatuto da Mulher Casada), marco da era de igualdade entre os cônjuges. Tais lutas jurídicas se fortaleceram com a criação da Emenda Constitucional nº 66/2010, que aprovou o divórcio sem a necessidade de separação judicial prévia.
Desde então, o Código Civil de 1916 não mais retratava o panorama atual da família, que começava a ser disciplinado em grande parte por inúmeras leis complementares, acarretando, então, no projeto de 1975, que resultou posteriormente no Código Civil de 2002.
Não se pode olvidar que, em matéria de atualização no campo da família, o legislador e o jurista sempre serão desafiados a dar respostas mais rápidas ante a constante e rápida evolução da ciência, como atualmente, com as inseminações e fertilizações artificiais, úteros de aluguel, cirurgias de mudanças de sexo, relacionamentos homoafetivos e as famílias multiespécies, que é a abordagem do presente artigo, dentre outras categorizações.
A Constituição Federal de 1988 representou um grande divisor de águas no direito privado, principalmente nas normas de direito de família, desconstruindo a noção de poder patriarcal do Código Civil de 1916. Com o advento da Constituição, foi consagrada a proteção à família, seja ela a fundada no casamento, na união de fato, família natural e a família adotiva.
O Código Civil de 2002 estendeu os princípios previstos na Constituição Federal de 1988 com relação ao direito de família, porém, não ousou abandonar princípios da família patriarcal já enraizados, não compreendendo, assim, os novos fenômenos da família contemporânea, que são buscados à míngua de legislação específica, no judiciário, restando a quem dela se espera o amparo, apenas a esperança da coerência e sensibilidade do julgador.
2. O avanço do tratamento do animal não humano
Os animais foram tidos como inferiores aos humanos durante toda a evolução dos seres vivos, sendo sempre considerados seres irracionais, ou seja, meras entidades mecânicas sem quaisquer estímulos sentimentais, e que serviam tão somente para satisfação dos seres humanos.
O pensamento de Tomás de Aquino, inspirado na ideia aristotélica de que o Homem é um animal racional, distingue-o de outros animais sem razão, isto porque é capaz de adquirir conhecimento das coisas e, consequentemente, distinguir o bem e o mal de forma livre, conforme sua razão, e ainda destaca-se dos demais animais pela nobreza de estar mais próximo da semelhança de Deus.
Em contrapartida, os animais sem razão ocupam no mundo uma condição de inferioridade, pois não são capazes de conhecer e amar a Deus e sequer realizar operações essenciais para o desenvolvimento da vida prática, sendo, portanto, mero instrumento para o bom uso do Homem.
Corroborando com essa visão, o filósofo francês René Descartes, em sua obra Discurso sobre o Método, com a máxima “penso, logo existo” acentuou ainda mais o distanciamento entre seres humanos e animais, pela ausência, destes últimos, da razão.
Ao longo dos séculos, diversos filósofos compartilharam o mesmo pensamento, dando ensejo à criação da teoria do especismo, a qual basicamente distingue o tratamento e valoração entre animais humanos e não humanos, sob o fundamento de que estes últimos são desprovidos de sensibilidade e, portanto, subordinados à espécie humana.
Segundo Singer, especismo é o “preconceito ou atitude de favorecimento dos interesses dos membros de uma espécie em detrimento dos interesses dos membros de outra espécie” (2010, p.11 apud VEDANA, p. 13-14).
No entanto, com a evolução histórica, a sociedade vem modificando a ideia anteriormente passada de que os animais não possuem sentimentos de forma consciente, isto, através de diversos estudos que apontaram a semelhança entre os mecanismos sensoriais ativados nos cérebros do ser humano e dos animais quando diante de estímulos de medo, dor ou prazer (VEDANA, 2018).
Todavia, infelizmente a legislação brasileira ainda possui a visão antropocêntrica ao tratar dos animais, fazendo com que, segundo BLANCO (2013, p. 80.), seja necessário o uso da hermenêutica para compreender:
“O status jurídico dos animais como coisas e abrir as janelas do novo, não um novo que desmereça as tradições passadas, mas que as distinga das tradições ilegítimas, para, ao fim, integrar-se em um círculo hermenêutico sujeito e objeto, com a compreensão e justificação do enquadramento dos animais não humanos”.
Em face do exposto, é possível verificar que o tratamento dado ao animal não humano antigamente não corresponde à realidade atual, vez que essas espécies vêm ganhando espaço na interação afetiva com os seres humanos, não ocupando mais uma condição de instrumento para a sua satisfação.
3. Constitucionalização do Direito do animal não humano
O cenário jurídico do Direito Positivo até os dias atuais, ainda ao tratar sobre os animais, referem a eles como “coisas”. Conforme entendimento de Maria Helena Diniz (op. Cit., p.323 apud BLANCO, 2013, p.80):
“As coisas abrangem tudo quanto existem na natureza, exceto a pessoa, mas como bens só se consideram as coisas existentes que proporcionam ao homem uma utilidade, sendo suscetível de apropriação, constituindo, então, o seu patrimônio”.
Todavia, é importante destacar ante a expressa previsão legal na carta magna de que essa visão antropocêntrica em que o ser humano é o senhor e possuidor absoluto da natureza, concedendo-lhe o direito de usufruir de todos os recursos naturais, sem limitação, atrelado apenas à questão econômica, não mais merece prosperar. Isto porque, com a previsão constitucional do artigo 225, nos traz a ideia de que se busca a configuração do biocentrismo. Vejamos:
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
A respeito é o entendimento de Seguin, Araújo e Neto (2016, p. 03):
“Este novo olhar para a questão ambiental, excede a esfera eminentemente econômica e passa a ter um caráter vital para a existência de todos os seres. A sustentabilidade passa a ser associada a três pilares: ambiental, social e econômica, impondo a adoção de uma nova postura coletiva, que privilegie os Direitos Humanos e a dignidade de todos os seres, inclusive outras formas de vida.”
O marco regulamentador do referido artigo constitucional, assegurando o direito dos animais ao proteger a fauna e a flora e vedando práticas que coloquem em risco a função ecológica que provoquem a extinção de espécies ou ainda, submetam os animais à crueldade, é a Lei dos Crimes Ambientais n.º 9.605/1998.
Através dessa visão, podemos concluir que o ser humano deixa de ser o senhor e possuidor absoluto da natureza e passa a ser o guardião dessa, aproximando-se através de sua gestão, de outros seres vivos, criando uma relação de respeito entre eles, e ainda tornando o ser humano dependente dessa relação.
4. Famílias e animais de estimação
Apesar de a legislação brasileira ainda ser omissa em diversos aspectos sobre os direitos dos animais, tem-se que atualmente esses estão presentes no cotidiano de diversas famílias brasileiras, que nutrem por eles sentimentos de carinho, amor, respeito, entre outros.
No Brasil, segundo uma pesquisa conduzida pelo Instituto QualiBest e publicada na Revista Negócio Pet, em 17 de março de 2020, realizada com 3.163 internautas, concluiu-se que, atualmente, cerca de 70% dos brasileiros possuem algum animal de estimação em casa, sendo os mais populares os cães e os gatos.
De acordo com a pesquisa, entre os internautas participantes, 14% possuem aves, 7% peixes e 8% outros animais, que incluem roedores e répteis. E ainda, a pesquisa apontou que 53% dos donos dos caninos e 54% dos donos dos felinos tratam seus animais como membros da família, igual aos humanos que compõe o grupo familiar.
Uma outra pesquisa realizada pela Proteção Animal Mundial, publicada em 16 de maio de 2019, apontou que entre os países Brasil, China, Índia, Quênia e Tailândia, os brasileiros são os que mais têm cachorros em casa, representando o percentual de 77%, sendo que destes, 94% consideram os seus animais como parte da família.
Evidente que a guarda dos animais no Brasil é responsável, segundo os resultados da pesquisa, com relação aos cuidados básicos com os cães, que 99% garantem comida, 98% água, 92% uma cama e 95% atendimento veterinário.
Esses estudos demonstram, de maneira inequívoca, que os animais não humanos estão se consolidando cada vez mais como membros intrínsecos nas famílias brasileiras, que tutelam sempre que possível o bem-estar destes, através dos cuidados com a saúde, aparência, diversão e o mais importante, com o afeto que lhes dão.
O crescimento dessa relação no seio familiar entre animais humanos e não-humanos, sobeja o reconhecimento de famílias multiespécie e consequentemente uma interpretação jurídica com relação a elas, vez que a cada dia que passa vem se tornando comum disputas jurídicas acerca do direito à companhia do membro da família não-humano em caso de uma dissolução da entidade familiar.
5. A família multiespécie
É evidente que estamos diante de um novo modelo de família, formada essencialmente pelo vínculo afetivo entre a espécie humana e a animal. Todavia, no Brasil, ainda não há legislação que trate desse tipo relação, que necessita de proteção jurídica.
Conforme já explicitado anteriormente, os animais não humanos recebem tratamento de membro da família, assim como os demais componentes humanos desse sistema. Assim, com a dissolução da entidade familiar, surge diversos conflitos com relação a guarda, visitas e até mesmo relativos à alimentação animal.
À míngua de legislação específica, os Tribunais vêm tentando dirimir os conflitos. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n.º 1.713.167 – SP em 19 de junho de 2018, reconheceu o vínculo afetivo dos companheiros pelo animal, possibilitando a fixação de visitas.
No referido julgado, ressaltou o Ministro Relator, Luis Felipe Salomão não se tratar de futilidade ou de menor importância a discussão acerca da entidade familiar e do animal, vez que, evidenciado nas famílias modernas a crescente afetividade para com seus animais de estimação, bem como a previsão Constitucional de sua preservação (art. 225, §1º, inciso VII).
Ressalta ainda que as disputas familiares envolvendo os animais domésticos não se restringem apenas à posse e à propriedade, pois há uma grande carga emocional envolvida, que não abarcada na legislação brasileira que trata da propriedade privada, onde juridicamente se enquadra os animais, vez que são considerados, na norma jurídica, como “coisas”.
Contudo, descarta a hipótese do enquadramento por analogia ao poder familiar, dos progenitores aos filhos, vez que esse é um direito em que é imposto aos pais a observância de deveres inerentes ao poder familiar, enquanto que, ao tratar dos animais, é uma faculdade.
Nesse ínterim, concluiu o Ministro Relator do Recurso Especial n.º 1.713.167 – SP de que:
“Na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção, do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal.”
Anteriormente a essa decisão, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) no X Congresso de Direito de Família, já havia aprovado o Enunciado n.º 11: “na ação destinada a dissolver o casamento ou união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal.”, cujo objetivo é proporcionar uma diretriz na criação de novas jurisprudências e doutrinas.
Partindo disso, em meados de 2018 foi proposto o Projeto de Lei do Senado n.º 542 pela Senadora Rose de Freitas (Pode-ES) que tramita perante a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) com a finalidade de regular a guarda compartilhada de animais de estimação nos casos de dissolução do casamento ou da união estável de casais.
O referido projeto utiliza a nomenclatura “custódia”, em consonância com a decisão do STJ, no Recurso Especial n.º 1.713.167 e do Enunciado n.º 11 do IBDFAM, vez que, o regime proposto deve ser diferenciado do instituto da guarda que diz respeito às crianças e adolescentes.
A esperança de preencher essa lacuna legislativa no tratamento da custódia, visitas e despesas com o animal sobeja na aprovação do PLS n.º 524/2018, que institui a competência especializada das Varas de Famílias e Sucessões para o processamento do assunto, modificando, inclusive, o artigo 693 do Código de Processo Civil para tanto.
Considerações finais
O direito de família está em constante evolução e, infelizmente a legislação brasileira não consegue acompanhar esse acelerado ritmo mediante o surgimento de diversos modelos de família.
Um dos modelos mais recentes é a família denominada multiespécie, que é composta por membros de espécies diferentes, isto porque, no decorrer da evolução humana, alguns animais foram domesticados e consequentemente, criando laços afetivos com até então, seus donos. Sendo inclusive, por exemplo, considerado como melhor amigo do homem o cachorro.
Todavia, essa relação foi mudando de perspectiva, e o animal já não é mais visto como um animal doméstico e, sim como um membro da família, gerando diversos conflitos quando da dissolução da entidade familiar, pois algumas pessoas não quererem abrir mão da companhia do integrante da família não humano.
Para dirimir esses conflitos, à míngua de legislação específica e na esperança da aprovação do PLS n.º 542/2018, os casos são levados ao Judiciário, que deve analisar e julgar de acordo com o caso concreto, respeitando e protegendo o direito a ser tutelado, mesmo que ausente legislação específica, aplicando-se como cerne da questão a previsão constitucional do artigo art. 225, §1º, inciso VII.
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