Veganismo x capiscentrismo

Veganismo é uma filosofia de vida e uma posição política. 

Ser vegano envolve diversos aspectos da vida social, ultrapassando em muito a questão alimentar. Essa escolha implica em não utilizar nenhum produto que tenha sido testado em animais, bem como produtos que contenham qualquer substrato de origem animal; ainda roupas, calçados, adereços que contenham partes oriundas de animais – couro, penas e outros; ou contratar serviços que envolvam exploração animal, tais como zoológicos, aquários, shows aquáticos, visitar hotéis fazenda ou assistir a shows de circos que usem animais como atração; utilizar animais exóticos como camelos, elefantes e outros como transporte em locais turísticos; ou charretes de tração animal. Ou seja, toda e qualquer atividade que submeta animais à exploração e sofrimento.

Os motivos para escolher o veganismo são diversos, todos igualmente relevantes e profundos, sendo possível destacar dois principais: a consciência de que os animais são seres sencientes e que não nasceram para servir ao ser humano; a preocupação com a sustentabilidade da vida no planeta e a ciência do impacto devastador, em especial, da pecuária e da pesca industrial para o meio ambiente.

A senciência animal caracteriza-se pela capacidade de estar consciente do que o cerca, de sentir dor, angústia, alegria, ou seja, de compartilhar de forma perceptível seus sentimentos entre os seus e com o ser humano. Os animais possuem relações familiares, de amizade, de companheirismo. Eles conseguem expressar afeto e cuidado entre os membros de seu grupo e com outros animais. Cada espécie possui sua própria forma de se comunicar, muitas delas já decodificadas e comprovadas por cientistas que estudam diversas espécies.

Absolutamente nada justifica que em um estágio tão avançado da humanidade os animais ainda sejam explorados e submetidos a todo tipo de crueldade, tais como viver confinados e, na maioria das vezes, sozinhos para mero entretenimento dos humanos ou nascerem escravos e serem abusados até a morte, sendo invariavelmente uma morte cruel e horrível, apenas para saciar o paladar de algumas pessoas. 

Documentários como “Cowspiracy”, “Seaspiracy” e “Terráqueos” esclarecem com muita precisão o impacto da exploração animal para o meio ambiente. Se continuarmos desperdiçando uma quantidade absurda de água para criar animais, destruindo o solo com a monocultura de soja para alimentar esses animais, ou mantivermos a pesca industrial predatória ilimitadamente, estaremos condenados à extinção, dado o esgotamento dos recursos marinhos e minerais do planeta. 

O que é mais ilógico, especialmente na questão envolvendo a criação de animais é que eles não precisariam existir. Eles nascem para viver pouco, de forma miseravelmente cruel, repisa-se, apenas para tornar-se comida para pessoas que comprovadamente não precisam dessa fonte alimentar. 

O que mantém esse ciclo destrutivo e irracional é unicamente a ganância. Quem enriquece à base da exploração animal, recusa-se a responsabilizar-se pela irreversível destruição do meio ambiente e reconhece a brutal violência à qual esses seres sencientes são submetidos nas fazendas de criação animal.

Portanto, a escolha do veganismo nasce, em regra, de uma tomada de consciência que envolve reconhecer essas questões e fazer algo concreto para frear tais atrocidades, materializando-se em uma filosofia de vida que se contrapõe a esse fluxo de abusos.

E por que é razoável afirmar que o veganismo é uma posição política? 

Cabe aqui uma digressão histórica. 

O antropocentrismo - a ideia de que o homem é a referência do cosmos social, é o centro referencial das ações da sociedade, ainda é a mais aceita e difundida pela Academia na atualidade. A ideia surgida no final da Idade Média marca o fim do teocentrismo, o conceito que colocava Deus, “teos”, como esse referencial central. Analisando a história, esses conceitos nortearam em larga medida as ações da sociedade, definindo os valores centrais que guiaram o desenvolvimento das relações sociais.

Como é consabido, o teocentrismo justificou a chamada “Santa Inquisição” e, em razão dela, todo tipo de perseguição religiosa e massacres em massa foram realizados, marcando o pior e mais longo período de trevas da história humana. Portanto, é razoável afirmar que essa referência, esse valor central quando utilizado de forma enviesada pode produzir terror e promover a decadência da civilização, ao invés de seu desenvolvimento.

O antropocentrismo coloca o homem como referência maior para nortear a vivência e convivência humana. De uma ideia que tem como origem o humanismo, é notório que o conceito se degenerou para um individualismo exacerbado, colocando cada indivíduo como principal referência de suas ações. Desconectando-se de vez do senso de comunidade que era tão vívido, principalmente na antiguidade.

Atualmente, considerando a insustentabilidade da vida na terra causada pela ação de alguns grupos de Poder, não é mais razoável dizer que o homem é a referência central para as ações da sociedade, mas sim o interesse econômico. Ele se sobrepõe à vida das pessoas. É o dinheiro que norteia as ações da sociedade. É a busca desenfreada por lucro a qualquer custo que vem servindo de referência e impactando as relações humanas. É plausível afirmar que vivemos em um “capiscentrismo” (neologismo criado pela autora).

Estamos afirmando que o antropocentrismo não existe mais. O homem, seja como ser social considerado como membro de uma coletividade, seja ele indivíduo, não é mais referência central para as ações em sociedade. O ser humano não é “um bem” a ser protegido. O dinheiro sim. Por dinheiro vale destruir o meio ambiente e o planeta, submeter seres humanos à miséria, à indignidade e os animais à perversa crueldade. 

Ser vegano é negar essa lógica de valores centrada em uma perseguição irracional por dinheiro e reconhecer que a vida de todos os seres vivos importa e merece ser protegida. Dinheiro é um meio, não um fim. Dinheiro existe para facilitar a vida das pessoas, para viabilizar trocas de forma prática e organizada, não para escravizar e adoecer a sociedade.

Ter a sensibilidade de olhar para os animais e preocupar-se com eles, reconhecê-los como seres dignos de consideração e proteção não é percebido socialmente como uma ação política, mas é. Estamos afirmando neste artigo que o homem se perdeu do seu ethos. A identidade da sociedade foi subvertida por uma ganância desumanizadora. Uma convivência respeitosa e empática com os animais é capaz de nos devolver a humanidade perdida. 

Quem convive com animais de forma afetivamente recíproca sabe o quanto eles são capazes de trazer à tona o melhor de nós. Eles são capazes de resgatar nossa empatia, nossa sensibilidade e o senso de cuidado com os demais seres.

Compreender que é urgente levantar-se contra esse estado de coisas que nos insensibiliza e está nos arrastando à destruição, é uma posição política potente.

Infelizmente, este raciocínio, por ser simples, é complexo de realizar-se de forma verdadeiramente crível. Reconhecer o quanto os animais são fundamentais neste passo da história da humanidade é algo que poucas pessoas têm a sensibilidade necessária para compreender.

Mesmo pessoas afetas a grupos políticos progressistas têm grave dificuldade em compreender o veganismo como um movimento político que deveria ser visto com mais respeito, dada a sua relevância transgressora.

É lugar comum ver textos que colocam o veganismo como algo de somenos importância, como uma futilidade de gente que se ocupa com questões de pouco relevo político. Essa percepção é um erro fruto de um pré-conceito artificialmente construído pela mídia, mas que não poderia ser mais divorciada da realidade. 

O veganismo não é movimento frívolo de gente alienada que se ocupa de coisas pueris enquanto o mundo arde em problemas mais graves. O veganismo preocupa-se com o cerne do problema que causa todos os demais problemas: o egoísmo, a indiferença desumana que está na base de todos os males que estamos vivendo.

Não se trata de querer dizer que todos deveriam ser veganos de imediato. É certo que seria sim a necessária saída da rota de extinção para a qual a sociedade humana está rumando, mas é consabido que tudo na história depende de avanços civilizatórios e que eles ensejam tomada de consciência. O primeiro passo é reconhecer o veganismo como um movimento forte e necessário, tirando-o dessa condição de desapreço político.

Algo muito positivo que merece destaque é que a Constituição brasileira de 1988 consagra em seu rol de direitos fundamentais a proteção à liberdade filosófica, artigo 5º, inciso VIII, “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. Logo, o veganismo, enquanto convicção filosófica e política, é um direito fundamental, assegurado constitucionalmente em nosso país.

Essa informação é de suma importância para que os membros do movimento vegano tenham a referência de que seus pleitos e exigências que assegurem o respeito a sua filosofia de vida e posição política possuem respaldo constitucional.

Só através da luta constante expondo situações insustentáveis, criticando abertamente atitudes tidas culturalmente como aceitáveis, posicionando-se contra atos que não podem mais ser naturalizados, que a sociedade poderá evoluir para um estágio civilizatório mais maduro e, roga-se, sustentável e saudável para todos os seres vivos.

Motivos não faltam para agir contra esse estado de coisas que nos apequena, que retira da sociedade humana sua plena capacidade evolutiva. É preciso caminhar para um futuro possível. E ele passa por retomar o nos define como seres humanos, nossa capacidade de cuidar uns dos outros e agir como seres gregários que somos.   

Sim, considere o veganismo! E principalmente, compreenda o movimento vegano para respeitá-lo em sua real dimensão e importância.

ADRIANA CECILIO

Advogada. Professora de Direito Constitucional. Especialista e Mestra em Direito Constitucional. Autora de livros e artigos jurídicos. Vegana e protetora de animais. Coordenadora Nacional da Coalizão Nacional de Mulheres.

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