Experimentação animal: uma visão abolicionista transdisciplinar

O´Animal 6´ passou por um procedimento cirúrgico altamente invasivo no qual os experimentadores fizeram furos em seu crânio e implantaram eletrodos em seu cérebro; No ´Animal 11´ estavam faltando vários dedos em ambas as mãos, e no pé direito, possivelmente por automutilação, ou algum outro trauma inespecífico. O´Animal 21` foi observado repetidamente vomitando, ofegante, e ´nauseado´, e ´interagiu muito pouco com o ambiente/observadores.Depois de suportar experimentos invasivos e efeitos colaterais dolorosos e debilitantes, como infecções nos implantes, esses animais – macacos rhesus – foram mortos (Physicians Committee, 2021) [1].

I. Panorama geral

A experimentação animal é uma das primeiras bandeiras de luta pelos direitos animais. Essa prática hedionda milenar segue firme devido à nossa herança cultural antropocêntrica e especista, à crença acrítica no paradigma mecanicista de ciência, e à deliberada má-fé, ligada a interesses econômicos. 

Os que se opõem a ela se fundamentam basicamente em dois argumentos. O primeiro é que esses experimentos são injustificáveis sob o ponto de vista ético e moral, por submeterem seres sencientes/conscientes a diversas categorias de danos físicos e psicológicos, e à morte. O outro diz respeito à falta de confiabilidade dos dados provenientes desses procedimentos.

Milhões de animais não humanos são mortos anualmente em testes de diversos tipos. Nesses expedientes eles são queimados, mutilados, injetados com substâncias tóxicas ou forçados a ingeri-las, são submetidos a condições ambientais extremas, dietas restritivas, e um sem-fim de outras perversidades. Ao cabo dessas sessões de tortura são geralmente mortos. 

É aterrador pensar que os dados provenientes desses experimentos não sejam confiáveis, pois isso torna essa prática ainda mais moralmente indefensável. Tal inconsistência é decorrente da base paradigmática mecanicista, subjacente a essa “ciência”, que é reducionista e inadequada para descrever fenômenos complexos. 

Venho tecendo um constructo abolicionista transdisciplinar num escopo que abrange o “micro” e o “macrointerdisciplinar”, isto é, a argumentação envolve tanto campos do conhecimento próximos entre si, como áreas descontínuas do saber. Nas ciências biológicas e da saúde a discussão envolve a Teoria da Evolução, genética; estudos anatômicos, fisiológicos, epidemiológicos; Senciência/cognição animal; e, nas ciências humanas, questões éticas, morais, epistemológicas, históricas, e educacionais acerca do caráter antiético e não-científico da vivissecção [2]. 

Tenho explorado ainda, brevemente, as possíveis alternativas e substitutivos aos anacrônicos modelos animais. Mas como tais inovações ocorrem com celeridade, isso pode tornar um texto rapidamente obsoleto. 

Meu foco está centrado, por conseguinte, nas razões subjacentes à resistência em fazer a transição para um novo caminho, sem o uso de animais. Estou convicta de que o enfoque transdisciplinar, aliado às visões sistêmicas de ciência, é a via mais promissora para erigir um conhecimento mais completo e fidedigno nesse domínio. Neste texto, porém, não será possível abordar tudo. 

II. Uma nota sucinta sobre paradigmas de ciência

II.1 Razão instrumental e paradigma mecanicista

A ciência hegemônica mecanicista, europeia, antropocêntrica, e especista tem sido historicamente um componente crucial quando se trata da exploração da natureza. Em sua pseudoneutralidade axiológica e epistemológica, ela submete a natureza - agora objetificada - à lógica da produtividade. 

O físico Frijof Capra (1996) destaca que o paradigma mecanicista domina a nossa cultura há várias centenas de anos, durante as quais modelou a nossa moderna sociedade ocidental e influenciou significativamente o restante do mundo. Esse paradigma consiste em várias ideias e valores entrincheirados, entre os quais a do universo como um sistema mecânico composto de blocos de construção elementares, a visão do corpo humano (e dos animais, eu acrescentaria) como máquinas, a visão da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência, e a crença no progresso material ilimitado a ser alcançado por meio do crescimento econômico e do avanço tecnológico. 

Trata-se ainda de uma forma analítica de construir conhecimento, marcada pela oposição sujeito-objeto e pela redução do mundo cognoscível ao âmbito do que é mensurável. 

Uma forte característica da ciência dominante é a tradução dos fenômenos naturais e sociais em termos de estruturas matemáticas. Embora esse reducionismo tenha impulsionado o progresso do conhecimento em muitos sentidos, ele erroneamente criou a ilusão de que a matematização da natureza houvesse criado uma verdade autônoma absoluta.

O que temos, na realidade, é um método e uma técnica específicos/inerentes a esse mundo da prática. Esse quantificar universal foi também um pré-requisito para a dominação da natureza que acabou provocando uma ruptura entre ciência e ética, pois essa ciência já não pode conceber a natureza e as inter-relações entre suas partes em termos de causas finais. Essa nova racionalidade exige o domínio sobre os sentidos, e mesmo a libertação deles. E aquilo que diz respeito à natureza é cientificamente racional apenas em termos das leis gerais do movimento físico, químico ou biológico (veja Marcuse, 1982).

Os doutores Ray e Jean Greek – ele médico, e ela veterinária – citam uma passagem que traduz com perfeição a argumentação anterior:

O fisiologista não é um homem comum. É um cientista, possuído e absorvido pela ideia científica que persegue. Ele não escuta os gritos dos animais, não vê o sangue deles escorrer, não vê nada além de sua ideia, e não está consciente de nada que não seja o organismo que esconde o problema que ele está procurando resolver (Moreau, 1988 apud Greek e Greek, 2000, p.29).

II.2 Sobre as visões sistêmicas

Sempre houve, contudo, quem se opusesse ao conceito (cartesiano) de animal machine [3]. O filósofo iluminista Voltaire, por exemplo, formulou a pergunta óbvia: “Responda-me, mecanicista, a natureza teria provido todos os meios de sentir neste animal, para que ele não sentisse?

Segundo Capra (1996), em oposição ao mecanicismo [4], na visão sistêmica as propriedades das partes não são propriedades intrínsecas, e só podem ser entendidas num contexto maior. O pensamento sistêmico não se concentra em blocos de construção, ou objetos, mas em relações, interconexões e princípios de organização. Ela é, por conseguinte, contextual; o todo é mais do que a soma de suas partes, e isso se deve às relações organizadoras do sistema. 

Em cada nível de complexidade os fenômenos observados exibem propriedades que não existem no nível anterior; são propriedades do todo que nenhuma parte possui. A organização dos sistemas vivos é, com isso, hierárquica, não no sentido de dominação, mas numa concepção de teia de relações, de redes aninhadas dentro de outras redes. 

Outra característica muito importante dos padrões de rede não-lineares, típicos dos sistemas vivos, são os laços de realimentação, ou mecanismos de feedback (arranjos circulares de elementos ligados por vínculos causais). A realimentação pode ser ‘negativa’ (mantenedora da estabilidade), ou ‘positiva’, a qual pode desencadear processos de amplificação e de distanciamento do equilíbrio, importantes concepções para modelar tanto organismos vivos, como sistemas sociais.

Sobre a riqueza do mundo natural, Prigogine (1996) sustenta que a matéria adquire novas propriedades quando distante do equilíbrio. Nesse estado, as flutuações e instabilidades cumprem um papel essencial na emergência de novas propriedades, e a matéria torna-se mais ativa. Pode-se dizer que no equilíbrio a matéria é cega, e que longe do equilíbrio ela começa a ver.

Consoante com Prigogine, Capra (1996) afirma que todos os sistemas vivos são sistemas cognitivos, e que a cognição implica a existência de uma rede autopoiética, ou seja, uma rede viva produz continuamente a si mesma; ela se autocria. Essa é uma distinção-chave entre processos físicos e biológicos. 

A abordagem sistêmica teve uma influência ínfima na biologia nas décadas de 1950 e 1960, à exceção da ecologia, devido ao sucesso que a abordagem reducionista havia alcançado com a elucidação da estrutura física do DNA.

Assim como as células foram consideradas os blocos de construção básicos dos organismos no século XIX, a atenção se voltou das células para as moléculas, no século XX, quando começou a exploração da estrutura molecular dos genes. Grande parte das ciências biológicas avançou explorando níveis cada vez menores dos fenômenos da vida. 

Isso resultou na crença de que as funções biológicas podem ser explicadas por estruturas e mecanismos moleculares, e a biologia molecular tornou-se uma maneira de pensar muito difundida que tem levado a uma séria distorção nas pesquisas biológicas.

Capra (1996, p.77) argumenta ainda que ao longo de toda a história da filosofia e da ciência, sempre houve uma tensão entre o estudo da substância (do que algo é feito?) e o estudo da forma (qual é seu padrão?). A estrutura envolve quantidades, e o padrão qualidades. As propriedades sistêmicas são propriedades de um padrão. Portanto, o que é destruído quando um organismo é dissecado é, exatamente, o seu padrão

III. Uma pitada de história

A experimentação animal tem uma longa história que, no Ocidente, remonta pelo menos ao ano 450 AEC. É impossível citar neste curto texto os principais nomes e feitos que marcaram essa trajetória, incluindo os que protestaram contra ela.  Fato é que essa prática macabra floresceu no fim da Idade Média e seguiu com bastante força nos séculos posteriores até os dias de hoje. 

Diversos autores atribuem a origem do movimento antivivisseccionista moderno à Grã-Bretanha da era vitoriana. Até o final do século XIX, o antivivisseccionismo tornou-se uma causa humanitária com grande apoio público, apesar da vivissecção ser responsável por uma pequena fração da enorme quantidade de sofrimento infligido aos animais. A vivissecção era (e ainda é) vista diferentemente de outras formas de maus tratos aos animais porque seus praticantes são profissionais ligados a atividades acadêmicas e à cura de doenças, logo, sua moralidade deveria ser irrepreensível (Bates, 2017).

Um breve olhar histórico indica que o movimento antivivisseccionista nasceu e foi impulsionado não apenas por vieses de ordem moral, ética, e estética, ou por motivações altruístas, mas também por razões de cunho antropocêntrico e pessoal. 

É importante sublinhar que, mesmo dentro do universo antropocêntrico da tradição religiosa cristã, houve interpretações opostas quanto ao direito que a espécie Homo sapiens tem de aprisionar, torturar, e matar outros animais.

Questionamentos epistemológico-científicos sobre a validade dos experimentos, e lutas sociais que discutiam o lugar da ciência e dos cientistas na sociedade, também estiveram e permanecem presentes até hoje. Eles se referem à forma como a sociedade faz escolhas éticas, como a ciência deve ser conduzida, e como as pessoas se situam em relação ao resto da criação.

Por fim, sempre houve quem ficasse chocado ou perplexo com tais procedimentos, assim como quem as olhasse apenas com curiosidade, indiferença, e até regozijo. Altruísmo, ética, e questionamentos críticos de natureza epistemológica devem se constituir, contudo, no fundamento básico da visão abolicionista que rege esse tema (Brügger, 2023).

Para Greek e Greek (2003) a história da experimentação animal é repleta de ignorância, imensos egos, e más notícias para os animais e seres humanos. As más notícias para os animais dizem respeito à violação de seus corpos, ao seu sofrimento incomensurável, e à sua morte. As más notícias para nós estão relacionadas à validade dos modelos animais, citada antes.

IV.  Uma pseudociência experimental

Apesar dos grandes avanços em ciência e tecnologia, o modelo animal ainda é o paradigma dominante na pesquisa biomédica e tem conseguido escapar dos rigores da medicina baseada em evidências. 

É preciso discutir os fatos científicos subjacentes a essa prática cruel porque o argumento moral, sozinho, sempre será contestado por falsas dicotomias e chantagens emocionais, como “o que você prefere sacrificar, um cão ou uma criança?” 

Há, contudo, progressos nesse sentido. Manifestações antivivisseccionistas de vinte anos atrás exibiam cartazes do tipo: “Parem com os experimentos em animais. Eles são cruéis”. Hoje é comum ver frases como: “Parem com os experimentos em animais. Eles não funcionam” (Menache, 2021). 

Os defensores da experimentação animal rotulam os antivivisseccionistas como ingênuos, românticos, e resistentes ao progresso da ciência, e recorrem ao supostamente massivo impacto no bem-estar humano (e animal) dessa prática para justificar a sua continuidade. Todavia, tal alegação não procede. 

Segundo a Teoria da Evolução, todos os organismos vivos evoluíram a partir de uma única forma de vida (LUCA - Last Universal Common Ancestor). A vida tem, portanto, origem e características comuns. Mas ao longo do tempo geológico emergiu uma multiplicidade de filos, classes, espécies, etc, resultando em milhões de plantas e animais muito distintos entre si. 

Os mecanismos evolutivos ocorrem no nível molecular, sendo que mudanças ínfimas podem provocar uma reordenação na sequência de aminoácidos, determinando uma nova proteína. Quando um gene se expressa, certas proteínas são codificadas e fabricadas, e é a atividade delas que determina tudo nos seres vivos (desenvolvimento, crescimento, fisiologia, etc).

Todas as espécies de plantas e animais são formadas pelas mesmas unidades de DNA, juntadas no mesmo processo. Mas os arranjos desse material comum são diferentes. Isso muda tudo; é como na combinação das notas musicais! 

Assim, as diferenças genéticas entre as espécies se expressam em assimetrias metabólicas, anatômicas, fisiológicas, etc, que afetam a absorção, distribuição, e metabolismo de substâncias. 

Outra questão é que as doses administradas aos animais em testes podem ser muito maiores do que as prescritas aos humanos, em termos de peso corporal. As vias de inoculação de diferentes substâncias (oral, anal, peritonial, vaginal, etc) também têm grande influência sobre os resultados, bem como as condições de laboratório. 

Animais explorados em testes são, ainda, em geral, menores do que os humanos e com isso têm um metabolismo muito mais intenso. Isso pode impedir que efeitos tóxicos apareçam, pois as toxinas são eliminadas mais rapidamente. Além do mais, fatores epigenéticos, enriquecimento ambiental, etc, podem afetar os resultados, mesmo em se tratando de estudos realizados na mesma espécie.

Os argumentos antivivisseccionistas de natureza epistemológica e científica (Genética e Evolução) são muito robustos: para que um modelo seja eficiente é preciso que não haja dis analogias causais relevantes entre o modelo e o objeto a ser modelado (p. ex. animais e humanos). 

Porém, é muito improvável que essa condição seja satisfeita porque nós e os animais fomos submetidos a pressões evolutivas muito distintas. Ao longo do processo evolutivo, diferentes formas de organização permitiram obter funções semelhantes por meio de diferentes meios causais. 

Assim, é comum que diferenças entre as espécies, mesmo que pequenas, resultem em respostas muito divergentes com relação a estímulos qualitativamente idênticos. Isso corrobora a importante premissa sistêmica de que o todo não é igual à soma das partes e desvela o caráter qualitativo e não-linear das interconexões subjacentes a tais processos. 

As discrepâncias decorrentes dessas assimetrias tornam muito problemática a extrapolação de dados obtidos em animais para seres humanos. É por isso que esses modelos falham em critérios cruciais no que tange à cientificidade como a predictabilidade e a refutabilidade – a capacidade de prever e de provar ser falso um fenômeno ou fato, respectivamente (Greek e Greek, 2003). 

Segundo Seyhan (2019), quase 95% dos medicamentos testados em humanos falham. Dados do National Institutes of Health (NIH), mostram que 80% a 90% dos projetos de pesquisa fracassam antes de serem testados em humanos, e para cada medicamento aprovado pela agência FDA (Food and Drug Administration), mais de outros mil são descartados. Com isso, a taxa de aprovação final de novos candidatos a medicamentos, desde a pesquisa pré-clínica, até testes em humanos e a sua aprovação, é de cerca de 0,1%.

Esse desempenho pífio não pode ser compreendido dentro do paradigma mecanicista. Nós e os outros animais somos sistemas complexos com diferentes trajetórias evolutivas.

Os ratos, por exemplo, são animais muito usados em experimentos. Mas eles respiram obrigatoriamente pelo nariz. Isso pode alterar como e quando uma substância entra pela corrente sanguínea; a secreção de ácido no interior do seu estômago é contínua, enquanto em humanos ela ocorre apenas em resposta à presença de alimentos ou outros estímulos; são animais de hábito noturno, susceptíveis a doenças diferentes daquelas que nos acometem, têm diferentes requerimentos nutricionais, e são incapazes de vomitar, entre muitas outras diferenças (Greek e Greek, 2003).

Há quem afirme que, apesar de tudo, os modelos animais têm rendido bons frutos. Entretanto, muitas descobertas atribuídas a eles foram baseadas em evidências clínicas, epidemiológicas e outras, provenientes de seres humanos. Isso serviu para mascarar a baixa confiabilidade dos modelos animais. 

Nenhum método é capaz de prever as reações de pacientes humanos com 100% de precisão. As reações diferem de acordo com o sexo, a idade, o grupo étnico e mesmo entre membros da mesma família. Somos bioquimicamente únicos.  

Apesar de pertencermos à mesma espécie, a pequena proporção de 0,1% de diferença pode produzir variações que se refletem, por exemplo, no metabolismo do colesterol e na manifestação da asma. Tudo isso reforça a ideia de que usar animais em pesquisas é ineficaz e antiético, pois nenhuma dessas particularidades pode ser descoberta nos modelos animais. 

Mais grave ainda é que muitos compostos químicos, cujos efeitos nocivos se encontram fartamente documentados em estudos epidemiológicos, clínicos, etc, podem ser “inocentados” via experimentação animal. Isso acontece porque os testes geram dados contraditórios e inconclusivos (Greek e Greek, 2003).

A saúde humana tem uma natureza multifatorial que inclui melhoramentos nas condições de higiene, alojamento, acesso à água potável, esgotos, alimentação, etc. A medicina conseguiu desenvolver conhecimentos e expedientes muito válidos. Mas temos que reconhecer seus limites e dar crédito às abordagens ecológicas, em contraposição às visões reducionistas. 

A visão dominante do corpo como uma máquina que pode ser protegida de doenças através de intervenções físicas e químicas teve origem na ciência do século XVII. Essa abordagem subestimou a influência dos determinantes primários da saúde humana, além da influência do comportamento pessoal (alimentação, atividade física), e destacou o papel do tratamento médico [5]. E a ênfase na intervenção, em vez de prevenção, acabou por privilegiar a vertente farmacológica baseada em modelos animais. 

É urgente que a opinião pública abrace esse tema, para que possamos alcançar mudanças nas esferas política e legislativa. É lamentável que muitos pesquisadores, apoiados por empresas que lucram com o fornecimento de animais, equipamentos para laboratórios etc., têm conseguido convencer os legisladores e o público de que a oposição a essas práticas parte de fanáticos mal-informados que situam os interesses dos animais acima dos humanos. 

Os defensores da vivissecção alegam que, se abolirmos o uso de animais, seremos obrigados a realizar testes em humanos. Alguns procuram até incutir sentimentos de culpa nos que se opõem a essa prática por, supostamente, colocarem em risco as vidas de pessoas que poderiam ser salvas por medicamentos e curas que serão “indubitavelmente” descobertas, “algum dia”, caso sigamos nessa trajetória.

Mas essas alegações ignoram a possibilidade de condutas baseadas em cosmovisões alternativas e métodos substitutivos. E omitem, propositalmente ou não, o fato dos humanos sempre participarem de tais testes seja voluntariamente, durante as pesquisas clínicas, seja involuntariamente, quando são submetidos a fármacos não seguros e fatais. 

Vivemos no país um importante retrocesso legislativo com a Lei nº 11.794/ de 2008. Essa lei, consoante com as demandas dos vivisseccionistas, afronta o inciso VII do § 1o do art. 225 da CF que veda as práticas que submetem os animais à crueldade. No vigor da Lei nº 6.638/79, que normatizava essa questão, foi promulgada a Lei 9.605/98 (a Lei de Crimes Ambientais) que impôs uma medida bastante restritiva no que concerne à vivissecção. 

No parágrafo primeiro do artigo 32 lê-se que “é crime realizar experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”. Esse parágrafo, que não tem tido aplicação prática, tornou clara a existência de crueldade nos experimentos científicos. E desencadeou discussões acaloradas acerca do que seria legal ou não, resultando em insegurança jurídica, pois atividades tidas como científicas, não poderiam ferir uma norma respaldada por um princípio ético da Carta Magna.

Desde o início da minha jornada na graduação já sentia uma profunda rejeição intuitiva por quaisquer formas de manipulação de vidas, mesmo de vegetais, em alguns casos. À época, não havia a possibilidade de recorrer à escusa de consciência, garantida pela Constituição Federal de 1988. Hoje vejo com alegria que a minha intuição – no sentido de instrução, conhecimento, ou conjunto de valores que vêm de dentro – estava alinhada com o que preconiza a epistemologia, a moral, a ética, e a ciência mais recentes [6]. 

Todas as evidências de que dispomos hoje, sejam de natureza ética ou científica, apontam na direção de abolir essa relação de tirania para com os animais. Precisamos, pois, de uma educação abolicionista animal e de juristas que levem em conta os avanços éticos, morais, e científicos da nossa época.


____________

Notas

[1]: Experimento da empresa Neuralink, do bilionário Elon Musk.

[2]: A palavra vivissecção significa “cortar (um corpo) vivo”; realizar operação ou estudo em animal vivo para observação de determinados fenômenos. 

[3]: René Descartes contribuiu de forma decisiva para a edificação desses fundamentos. Veja O Discurso do Método. Mas a ideia de fazer uma analogia entre animais e máquinas começou séculos antes, com Tomás de Aquino.

[4]: O paradigma mecanicista não está errado. Apenas é limitado e, com isso, inadequado para descrever diversos fenômenos, como os discutidos aqui. [5]: [5]: Veja, por exemplo, McKEOWN, Thomas. Determinants of Health. Human Nature, p. 61-67, abr. 1978. 

[6]: Mais sobre este texto, como um todo, veja Brügger (2023).

Referências bibliográficas

BATES, Alan. Anti-vivisection and the profession of medicine in Britain: a social history. London: The Palgrave Macmillan Animal Ethics Series, 2017.

BRÜGGER, Paula. Animais como modelos experimentais: uma visão abolicionista transdisciplinar. Florianópolis: Editora da UFSC, 2023.

CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução: Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1996.

GREEK, Ray; GREEK, Jean. Sacred cows and golden geese: the human cost of experiments on animals. New York/London: Continuum, 2000.

GREEK, Ray; GREEK, Jean. Specious Science: How Genetics and Evolution Reveal Why Medical Research on Animals Harms Humans. London/New York: Continuum, 2003.

MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. 6. ed. Trad.Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

MENACHE, Andre. The animal testing model. In: NELLIST, Christina (ed.).Climate crisis and creation care: historical perspectives, ecological integrity and justice. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2021.

PHYSICIANS COMMITTEE. Exposing Elon Musk’s cruel monkey experiments. Good medicine. Cover story. V.XXXI, n. 2, p.06-08, Spring 2022.

PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e leis da natureza.Trad. Leoberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora da UNESP, 1996.

SEYHAN, Attila. Lost in translation: the valley of death across preclinical and clinical divide: identification of problems and overcoming obstacles. Translational Medicine Communications, v. 4, n.18, 2019.

PAULA BRÜGGER

Bióloga,com especialização em Hidroecologia, mestra em Educação e Ciência, e doutora em Sociedade e Meio Ambiente. Foi professora titular do Departamento de Ecologia e Zoologia, da Universidade Federal de Santa Catarina, e atuou nos cursos de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento, e Perícias Criminais Ambientais. Foi coordenadora de Meio Ambiente da Sociedade Vegetariana Brasileira – SVB, e diretora de educação do Instituto Abolicionista Animal – IAA. Atualmente coordena o Observatório de Justiça Ecológica da UFSC. É autora dos livros Educação ou adestramento ambiental?, Amigo Animal – reflexões interdisciplinares sobre educação e meio ambiente: animais, ética, dieta, saúde, paradigmas, Jornalismo Especista – textos e fragmentos de olhares sobre os animais não humanos na mídia, e Animais como modelos experimentais: uma visão abolicionista transdisciplinar, além de  uma centena de outros textos sobre ética ambiental e animal. Temáticas de pesquisa: educação ambiental abolicionista animal; paradigmas de ciência e sustentabilidade; implicações éticas e epistemológicas da visão mecanicista da ciência na experimentação animal; e imagem da natureza e dos animais não-humanos na mídia.

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