Rumo ao ecoveganismo!
“O pior dos criminosos possui uma alma, mas não você, bela corça, nem você, javali, nem sequer você, ganso selvagem, tampouco você porco, ou você, cão. O ato de matar se tornou impune. E por ser impune, ninguém o percebe mais. E já que ninguém percebe, não existe. Quando passam pelas vitrines dos açougues onde grandes pedaços vermelhos de corpos esquartejados estão pendurados em exposição, acham que aquilo é o quê?” (Olga Tokarczuk) [1]
A escritora polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura com o livro Sobre os ossos dos mortos, abordou a caça predatória sem dissociá-la da matança de animais não humanos para produção industrial de carne. A citação que abre a nossa reflexão parte de uma constatação: o ato de matar tornou-se naturalizado, as pessoas não se espantam com os pedaços de corpos expostos nas vitrines de açougues. O consumismo de coisas, carnes ou sangue cegou a humanidade? Se por um lado vemos crescer o consumismo, por outro lado vemos o avanço das mudanças climáticas e o aumento de catástrofes ambientais.
O ano de 2023 foi marcado pela aceleração das mudanças climáticas. Mudanças antes denominadas de aquecimento global. A alteração na nomenclatura deu-se em função da constatação de que não há somente elevação exacerbada das temperaturas. Em algumas regiões notou-se o agravamento do frio. As mudanças estão sendo percebidas como eventos climáticos extremos, que a cada ano tornam-se mais frequentes e severos.
Com o aquecimento da atmosfera percebeu-se uma mudança nos oceanos, que tendo suas temperaturas alteradas drasticamente, fornecem energia adicional aos fenômenos rigorosos. A elevação do nível do mar causada pelo derretimento do gelo dos polos, em consequência, aumenta a probabilidade de tempestades, furacões e inundações costeiras.
As atuais catástrofes, nomeadas “naturais”, não são naturais, são fruto da ação humana. Uma nova época geológica caracterizada pelo impacto humano na Terra é conceituada de Antropoceno [2]. Donna Haraway aborda os impactos de padrões sistemáticos reeditados pela humanidade e geradores de um devastador colapso do sistema. São décadas de devastação das florestas e dos diversos biomas para produção nos moldes capitalistas e imperialistas. Biomas são devastados para favorecer o agronegócio em escala industrial. O agronegócio gera alimentos sem qualidade nutricional, a base de produtos químicos tóxicos e da produção de grãos modificados geneticamente. Alimentos nada saudáveis são usados para engordar os animais não humanos, criados em cativeiros insalubres, assim como para abastecer a produção de alimentos ultraprocessados. Com a devastação da Terra, dos biomas, propiciada pela industrialização e pelo modo de produção hegemônica de alimentos e produtos derivados do agronegócio, vimos surgir a sexta extinção em massa.
A sexta extinção em massa, diferente das cinco anteriores, caracteriza-se por ser consequência da ação predatória-destrutiva humana. Uma das suas características é o evento de mudanças climáticas globais severas e abruptas em curto intervalo de tempo. Nesta nova extinção global, a humanidade corre risco de tornar-se o dinossauro desta era. Juntamente com tantas outras espécies de animais e de plantas, o ser humano pode estar em vias de extinção.
A morte em grande escala foi uma das marcas das catástrofes de 2023. Qual a relação entre as enchentes no Rio Grande do Sul, os incêndios no Havaí e o terremoto no Marrocos com o veganismo? Seria o crescimento do veganismo uma forma de viver, de pensar, de sentir, de agir, transformadora o suficiente para amenizar os efeitos das mudanças climáticas? Como veganismo e ecologia podem mudar o mundo ou adiar o seu fim?
Na catástrofe do Rio Grande do Sul vimos algumas cenas aterradoras. A imagem da ovelha morta pendurada nos fios elétricos, na cidade de Muçum, foi macabra. O gado levado pelas águas foi outro episódio recorrente na grande mídia. Uma búfala arrastada por mais de 100 quilômetros foi parar em Porto Alegre. Contam-se os mortos sem quantificar as vidas não humanas. Quais espécies foram mais vitimadas e quais tiveram condições efetivas de sobreviver? Como seria a abordagem midiática se fosse encontrado um corpo humano pendurado na fiação elétrica? Qual relação das grandes áreas de pastagens para criação de gado com a tragédia? Silêncio!
Em agosto de 2023, os incêndios florestais na ilha de Maui, no Havaí, computaram mais de 100 mortes humanas. Quantas pessoas não humanas tiveram condições de fugir do fogo? Quantas morreram em meio às chamas? Quantas espécies conseguiram sobreviver? Quantas morreram, posteriormente, agonizando pelas consequências tóxicas da queimada ou por ferimentos derivados do incidente? São vidas que não aparecem nas estatísticas humanas. São vidas que não importam! A repercussão ao redor da destruição da cidade histórica de Lahaina se choca com a indiferença com relação às vidas não humanas dizimadas pela tragédia. Vivemos em um tempo no qual as coisas se sobrepõem à vida. O planeta Terra está sufocado de tanta “humanidade”!
O terremoto no Marrocos foi registrado como um dos mais mortais da história. Devastou cidades e vilarejos inteiros. A grande mídia anunciou, aproximadamente, 3 mil mortes humanas. Quantas vidas não humanas foram soterradas nos escombros das construções humanas? Quantas espécies de animais não humanos tiveram condições efetivas de salvarem suas próprias vidas e de suas crias? Os dados não abordam as vidas não humanas. A impressão que fica é que somos uma espécie isolada do restante da vida planetária. Somente contam as vidas humanas. Um silêncio moribundo habita a alma humana!
Na 78ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada nos Estados Unidos em setembro de 2023, o Secretário-geral, António Guterres, fez um alerta: “a humanidade abriu as portas do inferno”. Falou-se sobre a emergência climática sem apontar medidas imediatas para frear os seus efeitos. Falou-se sobre a tragédia para a vida humana sem abordar a tragédia cotidiana que o ser humano representa para a vida das outras espécies (animais não humanos, mineral e vegetal). Falou-se sobre a tragédia para a vida humana sem abordar a tragédia cotidiana que o ser humano representa para a vida planetária.
Trata-se de discurso vazio se não são acionados meios para frear os danos à vida planetária. São proferidos discursos vazios diante das câmeras da imprensa mundial. Depois do evento, como se portam as pessoas ali reunidas? Quantos banquetes regados com sangue inocente são servidos para as autoridades? Há uma cisão entre discurso e ação. No campo político muito se fala de forma compartimentalizada sem a necessária conexão com o modo de produção contemporâneo.
No Brasil, o ruralismo é predatório. A bancada ruralista criou a tese jurídica do marco temporal, segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou disputavam até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. A tese visa desapropriar inúmeras famílias indígenas para derrubar florestas, exterminar a fauna e flora visando a ampliação das áreas de pastagem, garimpo e mineração. No dia 21 de setembro de 2023 o Superior Tribunal Federal (STF) rejeitou a tese do marco temporal. Alguns dias depois, sujando a própria Constituição e zombando do STF, o Senado aprovou a lei do marco temporal, inclusive agravando alguns de seus decretos predatórios.
O Brasil se orgulha de ser um dos maiores produtores de grãos, sem avaliar as consequências do uso indiscriminado de veneno e de organismos geneticamente modificados. A extensão da produção é avaliada somente em termos econômicos, porém, um lucro gerado para poucas pessoas. Na contramão, nas pequenas propriedades rurais, nas florestas, os povos ribeirinhos, indígenas e quilombolas sobrevivem como podem. Nas mega fazendas a produção de grãos transgênicos regados a veneno é, muitas vezes, conciliada com criação de rebanhos. Nestes locais, longe dos olhos humanos, os frigoríficos são fábricas de morte em massa escondidas de seus futuros consumidores.
Laura Luedy escreveu sobre a história do abate industrial e sobre a mudança desses centros de matança em massa para locais cada vez mais isolados e escondidos. Diz ela: “A literatura que se debruça sobre o caminho histórico que foi traçado pelas mudanças nas técnicas ocidentais de abate de animais costuma sublinhar algumas linhas comuns que se consolidaram nesse respeito. Destaca-se, sobretudo, o progressivo afastamento espacial dos matadouros em relação aos centros populacionais; as mudanças arquitetônicas que priorizaram os espaços fechados e internamente fragmentados; e as incontáveis mudanças técnicas que terminaram por se traduzir em abatedouros com um número muito maior de trabalhadores que exercem funções mais mediadas por instrumentos, saberes, ritmos que não dominam inteiramente” [3].
A morte em grande escala e a produção serializada de carne está distante das cidades e dos olhares humanos, facilitando a cisão entre o animal morto e o produto final embalado e levado para ser consumido nas cidades. A distância evita o “desconforto” do grito agonizante antes da morte, evita também, que as pessoas não sintam o cheiro insuportável de sangue e de fezes misturados no chão dos abatedouros.
Pouco comentado é o caso das doenças e epidemias gestadas nestes locais de sofrimento e morte serializada. Em 2020, em plena pandemia de COVID-19, foi traduzido para o Brasil um dos mais importantes livros de Rob Wallace. Intitulada Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência [4], a obra aborda as doenças geradas pelo agronegócio, especialmente pela pecuária. A gripe aviária, a gripe nafta, o vírus influenza A, a gripe fazendeira, os vírus H3N2v, H7N9, H10N8, H1N2v, o ebola, o vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19 são apenas a ponta do iceberg. O isolamento das espécies afasta a biodiversidade e promove a proliferação de doenças infecciosas. Escreve o autor: “olhando para o futuro, descobrimos que os coronavírus são apenas alguns dos muitos patógenos que se desenvolveram em tal contexto econômico. O que sofremos hoje já está em movimento em algum outro lugar. Em diversos lugares”.
Em setembro de 2023, ativistas veganos ao redor do mundo acompanharam o ataque do governo italiano ao santuário Progetto Cuori Liberi. Os 10 suínos que viviam sob a guarda da equipe do santuário foram mortos, seus corpos foram jogados em um caminhão e levados para “descarte sanitário”. Dois estavam contaminados pela Peste Suína Africana (PSA). Sabe-se que a PSA é uma doença viral contagiosa, causada por um Asfivirus e acomete suínos, javalis e cruzamentos das espécies. Os demais não estavam contaminados e foram mortos mesmo assim. É interessante nos questionarmos: o que mobilizou o governo italiano? Parece-nos evidente que o governo defendeu o interesse do agronegócio. Eliminaram-se vidas saudáveis para que os empresários da indústria da carne não corressem o risco de perder royalties. Assim, a matança para o consumo de carne justifica o “abate sanitário” dos animais saudáveis e a classe empresarial não para de gerar lucro.
Uma das ativistas que aborda a relação entre ecologia e veganismo é Greta Thunberg. Ela é sueca, ativista a favor dos direitos dos animais e das pautas ambientais. Participa ativamente em vários congressos sobre a preservação do meio ambiente e, nas redes sociais, conscientizando jovens e adultos sobre a importância de um consumo crítico e consciente. Sua identidade como ativista começou a ser reconhecida mundialmente quando a jovem decidiu protestar contra as mudanças climáticas em frente ao parlamento sueco. As ações conseguiram mobilizar diversas pessoas, sobretudo, viralizou entres jovens. O movimento ficou conhecido como Friday For Future [5] e eclodiu ao redor do mundo. No site, são atualizadas, constantemente, notícias sobre as ações e os protestos, além de compartilhar textos explicativos, sobre qual a importância da preservação ambiental e o que podemos fazer para contribuir com a causa.
Greta Thunberg se tornou vegana e propõe repensarmos o nosso modo de vida, pensarmos em uma perspectiva global. Para ela, uma sociedade carnista, além de explorar a vida dos animais não humanos, causando-lhes dor, isolamento e sofrimento, coloca a vida planetária em uma situação de esgotamento dos recursos naturais, causando destruição, morte e transformações globais irreversíveis. Em 2023, ela publicou o seu primeiro livro: The climate book: the facts and the solutions hardcover, ainda sem tradução no Brasil.
Apesar de muito jovem, ela faz uma pungente crítica às políticas mundiais e aos seus aliados industriais, ambos empenhados em fazer vista grossa quanto ao caráter emergencial e severo com relação às alterações climáticas e às suas consequências para a vida planetária. O mais interessante é que ela não fica estagnada na crítica. Ela elabora proposições, tais como: redução do consumo, redução da produção, redução ou eliminação da carne como alimento, eliminação do uso de agrotóxicos para produção de alimentos etc. A grande questão é que estas soluções afetariam o capitalismo e o constante lucro dos “donos do mundo”.
A agroecologia já estava na pauta de anarquistas e de pessoas libertárias, antes mesmo da criação do conceito. Maria Lacerda de Moura (1887 – 1945) foi uma educadora e escritora mineira que viveu na comunidade libertária de Guararema. Ela conviveu entre desertores da Primeira Guerra Mundial vindos da Europa e de outros continentes. Eram pacifistas, em sua grande parte, aderiram ao vegetarianismo e propunham a redistribuição de terras. Ela foi, provavelmente, a primeira pessoa no Brasil a escrever em defesa dos animais não humanos.
Em seu livro Civilização, tronco de escravos ([1931] 2020), ela associa, de forma brilhante, a ciência e a industrialização a serviço do poder político e econômico. Para ela, havia uma grande contradição na adoção do termo “civilização”, já que os grupos sociais considerados civilizados conjugavam práticas brutais, tais como a caça desportiva e o patriotismo, ambas serviam como bases de sustentação para a venda de armas e levavam às guerras.
Outro aspecto relevante é notado em seu debate sobre a produção industrial e o acúmulo de riquezas por uma minoria, graças à labuta mal remunerada de uma multidão de trabalhadoras e trabalhadores famintos. Já no início da obra, ela aponta as consequências e diz: “É o excesso de produção, sob todos os aspectos, na lavoura como nas indústrias, causa de todos os conflitos na sociedade atual. O nosso mal não vem da falta e sim do excesso de produção. A miséria do mundo moderno ainda vem da fartura e do excesso de riqueza e de progresso material. Da má distribuição de gêneros alimentícios. Por ora, a terra daria bem para a sua população” [6]. Neste livro, assim como em outros textos, ela faz uma crítica ao vivisseccionismo e a exploração das outras espécies no modo de vida capitalista. Para ela, o capitalismo e o industrialismo usam as outras espécies como produtos para gerar lucro para poucas pessoas.
O acúmulo de riquezas através da produção industrial não resolveu a questão da fome. Muito pelo contrário, agravou as diferenças; o abismo que separa as grandes fortunas da multidão de famintos, discussão presente nas narrativas de Maria Lacerda de Moura. O carnivorismo engordou os “estômagos civilizados”, porém, não sanou a fome da classe trabalhadora, cujo sangue e suor se misturam nos abatedouros, nas grandes fazendas e nas fábricas, que gradativamente ficaram mais escondidos, longe dos centros urbanos.
A proposta de um ecoveganismo, enquanto modo de vida, é uma das formas de minimizar os danos causados pela industrialização e pelo capitalismo. Não é mais possível pensar as questões ecológicas sem olhar de forma crítica para a produção industrial, para a devastação predatória que causa um grande impacto ambiental. Não é mais possível negar o sofrimento e a dor causada às outras espécies, seja para produção de alimentos e de produtos variados, para diversão humana ou mesmo para exploração dos recursos naturais. Hoje existem vários veganismos. Veganismo popular, veganarquismo, veganismo político etc. É necessário que o veganismo não se dobre ao capitalismo e, em consequência, acabe por deslocar as outras espécies do ecossistema. O veganismo está muito além de um mero debate com relação à alimentação. Sua grande potencialidade revolucionária está em ver, pensar, sentir e agir com as outras espécies de forma integrada à vida planetária.
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Referências bibliográficas
[1] TOKARCZUK, Olga. Sobre os ossos dos mortos. Tradução: Olga Baginska-Shinzato. São Paulo: Todavia, 2019, p. 102.
[2] HARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. Tradução: Susana Dias, Mara Verônica e Ana Godoy, publicado no site: http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/antropoceno-capitaloceno-plantationoceno-chthuluceno-fazendo-parentes/.
[3] LUEDY, Laura. Mercadoria e signo: notas sobre o abate industrial no Brasil hoje e alguns de seus marcadores expressivos. LESSA, Patrícia; STUBS, Roberta; BELLINI, Marta. Relações interseccionais em rede: feminismos, veganismos, animalismos. Salvador: Devires, 2019, p. 76.
[4] WALLACE, Rob. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. Tradução: Allan Rodrigo de Campos Silva. São Paulo: Editora Elefante, 2020, p. 545-546.
[5] Ver em: https://fridaysforfuture.de/
[6] MOURA, Maria Lacerda [1931]. Civilização, tronco de escravos. Org. Patrícia Lessa e Cláudia Maia. São Paulo: Editora Entremares, 2020.