O caminho de união entre o ambientalismo e o animalismo brasileiros
No início da década de 1970, os movimentos ambientalistas no Brasil nasciam e cresciam, a exemplo do que acontecia em todo o mundo. O gaúcho Henrique Luís Roessler, que nasceu em 1896, foi o primeiro brasileiro a fundar uma entidade com personalidade jurídica para defesa do meio ambiente. Em 1955 fundou a União Protetora da Natureza – UPAN. Ele nos legou inúmeros artigos sobre ecologia e se uniu a Lutzenberger para fundar a Associação Gaúcha de Proteção à Natureza - AGAPAN, nos fins de 1970. [1]
A Fundação Brasileira para Conservação da Natureza (Rio de Janeiro) foi a segunda ONG fundada no Brasil em 1958, pelo engenheiro-agrônomo Simões Lopes e outros funcionários públicos que, em virtude de seu trabalho, estavam ligados ao ambiente, como cientistas e agrônomos, e incluía também industriais, jornalistas e artistas.
Em Minas Gerais, a preocupação com o desmatamento levou professores da Universidade Federal de Viçosa a se mobilizarem em torno do assunto e fundaram o Centro Mineiro de Conservação da Natureza - CBCN, a primeira entidade ambientalista de Minas Gerais. Fundada em 1967 pelo professor Roberto da Silva Ramalho na Escola Superior de Florestas, teve como objetivo principal trabalhar para a conservação dos recursos naturais. Seu trabalho tinha cunho científico.
Foi também em Minas Gerais que o movimento de proteção aos animais, por mérito da Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal [2], adotou um novo perfil de atuação, fugindo dos abrigos para cães e gatos, para trabalho educativo e estudos científicos sobre a fauna e a questão do bem-estar animal. A entidade elaborou sugestões para a aprovação de vários projetos de lei que acabaram por ser aprovados. A proteção animal nasceu na esteira do ambientalismo, e desde então cresceu lado a lado com o ambientalismo até se tornar, mais tarde, um movimento autônomo.
Durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, conhecida como Rio-92 ou Cúpula da Terra (3 a 14 de junho de 1992), enquanto líderes das Nações se reuniam no Rio Centro, um encontro paralelo da sociedade civil acontecia na Praia do Flamengo, onde se reuniram representantes da sociedade civil de todo o planeta. Várias entidades redigiram um relatório preparatório para a Conferência da Sociedade Civil sobre meio ambiente e desenvolvimento, intitulado “Uma visão das ONGs e dos Movimentos Sociais Brasileiros”, redigido e assinado por 1200 ONGs de todo Brasil, inclusive por representantes da proteção animal.
Em 08 de agosto de 2006, foi fundado o Instituto Abolicionista animal – IAA. Depois desse acontecimento, o Direito Animal penetrou definitivamente no mundo acadêmico e foi se formando uma cultura jurídica que permitiu a separação do Direito Animal do Direito Ambiental. A princípio a disciplina Direito Animal foi ministrada dentro da disciplina de Direito Ambiental.
Com a introdução do Direito Animal na grade curricular das universidades, vários professores contribuíram para a solidificação de novos paradigmas e para a construção da teoria do Direito Animal no Brasil.
Inicialmente, a inclusão do Direito Animal no currículo escolar foi fruto de um processo de sensibilização e capacitação de professores e alunos, que partiu da legislação e do movimento social em defesa dos animais para propor uma maior consideração na esfera jurídica dos interesses destes seres. Por essa razão, David Favre alude que o movimento de proteção animal transformou-se, também, em um movimento jurídico de conscientização sobre o sofrimento animal e de tentativa de mudanças em favor dos não-humanos. [3]
O debate sobre a teoria dos direitos dos animais começou a criar força com o neo-utilitarismo de Peter Singer, segundo o qual os interesses dos animais sencientes devem ser levados em consideração em igualdade de condições com os interesses humanos. [4] A corrente denominada “movimento pelos direitos dos animais” teve como primeiro expoente o filósofo norte-americano Tom Regan, que reivindica a abolição da vivissecção, dissolução da agropecuária comercial e proibição da caça, apresentando a ideia do animal como sujeito-de-uma-vida. [5]
De outro lado, juristas como Steven Wise, Gary Francione e Jean-Pierre Marguenaud, estão mais preocupados em atribuir personalidade jurídica aos animais, de modo a assegurar-lhes a capacidade de adquirir direitos e defendê-los em juízo através de seus representantes. [6] Marguénaud entende que a concessão de personalidade jurídica para os animais é uma necessidade que decorre da própria lógica jurídica, ao mesmo tempo em que constitui uma realidade técnica. [7]
Wise defende a imediata extensão de direitos subjetivos aos chimpanzés e bonobos. Todavia, Wise não se restringe apenas aos chimpanzés e bonobos, e assevera que os juízes devem reconhecer a titularidade de direitos a todo e qualquer animal de acordo com o seu grau de autonomia e potencialidades mentais. [8]
Gary Francione considera que o maior obstáculo para que os animais tenham reconhecida a sua dignidade moral é o fato de serem considerados propriedade humana. Ele critica a legislação bem-estarista que fala em sofrimento desnecessário, sendo que o sofrimento necessário é indefensável. [9]
A teoria da dignidade animal foi a primeira a ganhar força no Brasil. Ela foi se fortalecendo com a promulgação da Constituição da República de 1988, com a legislação e o trabalho de professores, promotores, advogados animalistas e juízes brasileiros.
Ressalte-se que a dignidade humana é um dos princípios da nossa República. A CR traz elencados em seu bojo os direitos fundamentais, sociais e socioambientais. À luz da teoria dos direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional brasileira, a dignidade é reconhecida a outras formas de vida não humana e à vida em geral. Podemos afirmar que a dignidade animal já foi consagrada como um princípio pela doutrina e jurisprudência brasileiras.
Quando a doutrina e o mundo acadêmico aceitam o novo paradigma jurídico, novas teorias são criadas para inovar as relações dos homens entre si ou entre os homens e os animais. E quando a jurisprudência a acolhe se torna um princípio. A dignidade animal, ao ser agasalhada pela CR se incorporou ao âmbito da principiologia do Direito brasileiro.
Para SARLET e FENTERSEIFER “a dignidade humana, para além de ser um valor, configura-se sendo juntamente como o respeito e a proteção da vida o princípio de maior hierarquia da nossa Constituição e de todas as ordens jurídicas que a reconheceram.”[10]
A “teoria dos animais como sujeitos de direitos” foi abordada pela primeira vez no mundo acadêmico, no Brasil, na primeira tese de doutorado “Tutela jurídica dos animais”, defendida em 2000 junto à Universidade Federal de Minas Gerais. [11] Os animais no Brasil são sujeitos de direitos fundamentais outorgados pela Constituição. Aqui cabe distinguir que ser sujeito de direitos é questão doutrinária, e ter personalidade jurídica depende de política legislativa. Sujeito de direito é o ente a quem o legislador outorga direitos, independente de ser pessoa ou ter personalidade jurídica. A personalidade jurídica tem que ser reconhecida por lei e, no Brasil, o Código Civil considera os animais como coisas. Ser sujeito de direito é ter titularidade e precede o direito de ser pessoa.
Por razões de coerência e em respeito ao princípio da proporcionalidade uma mudança da categoria no status jurídico dos animais no Código Civil brasileiro é necessária e urgente, se não quisermos deixar o Brasil fora desta grande revolução teórica que já chegou aos países adiantados em relação ao status jurídico do animal.
A teoria do Habeas corpus para os animais surgiu quando foi impetrado por um grupo de promotores, em Salvador – BA, um habeas corpus em favor da chimpanzé Suíça, que vivia no zoológico municipal. A aceitação exordial do habeas corpus “Suíça” já significou por si própria, uma atitude avançada no meio jurídico, pois impôs à comunidade acadêmica a necessidade de debater as premissas nas quais está assentado o direito tradicional. [12] Tornou-se um precedente inédito. As mudanças de paradigmas jurídicos vieram acompanhadas de uma remodelagem de conceitos e institutos, levando-nos a discutir pressupostos processuais, como personalidade jurídica dos animais, animais como sujeitos de direito, capacidade processual dos animais e condições de ação. Desta forma, a teoria do HC acelerou o processo de evolução do pensamento jurídico brasileiro, contribuindo para a formação de uma consciência de justiça animal e difundindo valores de respeito e proteção à vida em geral.
A Teoria do dano animal foi impulsionada pela Declaração de Cambridge sobre consciência animal, assinada em 07 de julho de 2012, por neurocientistas, na Inglaterra. Com base na senciência animal e na dignidade animal, a teoria entende que cabe indenização na área civil pelo dano causado ao animal, tal como ocorre com o dano ambiental. O reconhecimento jurídico da senciência animal e a consequente ascensão do paradigma ético de proteção aos animais como indivíduos já é uma realidade na jurisprudência brasileira.
A teoria da capacidade processual do animal foi abordada pela primeira vez no Brasil pelo professor Tagore Trajano de Almeida Silva em sua tese de Mestrado (2012) “Animais em Juízo”. [13] Segundo o Juiz e professor doutor Vicente de Paula Ataíde Jr. em seu livro pioneiro “Capacidade processual dos animais, a judicialização do Direito Animal no Brasil”, a teoria processual brasileira está em franca transformação após a Constituição de 1988 e a edição do Código de Processo Civil de 2015. [14] Uma vez que a Constituição reconhece direitos individuais aos animais e, nesse sentido, o Direito Animal não se confunde com o Ambiental, torna-se impossível se negar a posição de parte a quem possui direito individual. O acesso à justiça é garantido a todos para a tutela jurisdicional de direitos pela lei reconhecidos.
Embora o animalismo tenha se formado dentro do ambientalismo e o Direito Animal nascido no bojo das leis de Direito Ambiental, podemos dizer que hoje é um ramo autônomo do Direito e que cresce o número de advogados animalistas no país.
Os primeiros teóricos do direito animal no Brasil surgiram nas últimas décadas do século XX. O Padre Antônio Vieira (ex-Deputado Federal pelo CE), conhecido defensor dos jumentos e autor dos quatro volumes do livro “O jumento nosso irmão”, foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz, em 1997.
No início do século XXI, após lançada a semente da primeira tese de doutorado sobre o tema, cabe destacar as figuras dos teóricos Geuza Leitão de Barros (CE), com o livro “A voz dos sem voz”, Danielle Tetu Rodrigues (PR), com seu livro “O direito & os animais: uma abordagem filosófica, ética e normativa”. Daniel Braga Lourenço (RJ) escreveu um dos maiores tratados sobre Direito Animal no P,aís “Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas”.
Os maiores responsáveis pela divulgação do Direito Animal no âmbito acadêmico foi, sem dúvida, os professores Heron Santana Gordilho (BA), Luciano Rocha Santana (BA), Tagore Trajano de Almeida Silva (BA), que são inclusive criadores da primeira revista acadêmica sobre o tema: “Revista Brasileira de Direito Animal”, editada pela Universidade Federal da Bahia-UFBA. Outra valiosa contribuição foi a adesão dos renomados teóricos Tiago Fensterseifer e Ingo Wolfgang Sarlet, bem como dos igualmente renomados Promotores de Justiça Laerte Fernando Levai e Vânia Tuglio (SP) e do Juiz Federal Vicente de Paula Ataíde Júnior (PR).
No jornalismo jurídico, destacamos os sites da ANDA, de Silvana Andrade e Jus Animalis, de Agda Frare e Maria Izabel Toledo.
Conclusão
Embora o animalismo tenha se formado dentro do ambientalismo e o Direito Animal nascido no bojo das leis de Direito Ambiental, podemos dizer que hoje é um ramo autônomo do Direito.
A política pública de proteção aos animais, embora seja executada por órgãos públicos cuja competência é a área do meio ambiente, já conta com departamentos e diretorias interdependentes. A nível federal, em 2020, o Decreto n. 10.455, que aprovou a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das funções de confiança do Ministério do Meio Ambiente e dos órgãos específicos singulares concedeu à Secretaria de Biodiversidade a atribuição, entre outras, de proteção e a defesa animal, inclusive dos domésticos.
Em 2023, houve novo avanço, quando o Decreto n. 11.154 modificou a estrutura do Ministério de Meio Ambiente e Mudanças do Clima e criou o Departamento de Proteção e Defesa de Direito dos Animais, dentre outros órgãos específicos singulares. O interesse da população sobre políticas públicas para animais tem crescido paulatinamente.
Na elaboração do Plano Plurianual Participativo 2024 – 2027, a pauta animal ganhou protagonismo e foi um dos temas mais votados em diversas categorias no PPA Participativo. Segundo a “Diretora de proteção, defesa e direito dos animais do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima”, Vanessa Negrini, [15] a “Política de Castração de Cães e Gatos” garantiu a 9ª posição no ranking geral de votação. Porém, quando considerados apenas os interesses coletivos e difusos, essa proposta ocupou o primeiro lugar geral. Ela ficou atrás apenas de demandas corporativas e de vantagens pessoais, como questões relacionadas à carreira, salário e concursos.
Vale ressaltar que essa proposta popular foi a mais votada no Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. No âmbito do Ministério do Meio Ambiente e do Clima Meio (2023), a pauta animal obteve grande destaque, conquistando além do primeiro lugar, outras sete das dez primeiras posições. Entre as propostas mais votadas estão a "Agenda Nacional de Proteção, Defesa e Direitos Animais" em segundo lugar, seguida pela "Proteção dos jumentos" em terceiro lugar e pela "Resposta aos animais em situações de desastres", em quarto lugar.
O PPA Participativo [16] é a participação social na elaboração do PPA, envolve priorizar os programas do governo para os próximos quatro anos, elaborar e apoiar propostas dos participantes. Antecede o envio do projeto de lei ao Congresso Nacional e enriquece o debate sobre as prioridades do país, tornando o planejamento mais próximo das necessidades da população.
Os Ministérios Públicos criaram coordenadorias específicas para tratar dos direitos dos animais. O mesmo ocorre com algumas delegacias de Polícia Civil. A Polícia Militar possui pessoal especializado para ocorrências que envolvem a fauna.
Inúmeros são os congressos, simpósios e seminários realizados para discutir o Direito Animal, com interesse crescente do público. Jornalistas especializados no tema “animais” são uma realidade. A mídia em geral frequentemente cobre fatos relacionados ao tema.
As universidades já ministram a disciplina Direito Animal, seja dentro da grade curricular, matéria opcional ou dentro da grade de Direito Ambiental. Vários cursos de pós são ministrados por todo o país com muito sucesso e aceitação dos discentes. Grupos de pesquisa sobre o tema igualmente se multiplicam. Os animais foram reconhecidos como seres sencientes pela Declaração de Cambridge (2012). Podemos dizer que já existe no Brasil uma teoria do Direito Animal consagrada pela doutrina, e a biografia sobre Direito Animal se multiplica.
Um projeto que um dia foi um sonho, hoje faz parte do cotidiano nos programas de cursos universitários, de cientistas, das pessoas comuns e daqueles que conduzem o destino do País.
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Referências bibliográficas
[1] AVELINE, Carlos Cardoso. A primeira ONG brasileira. Meio ambiente em jornal, n. 23, pg16. Edirel Editora: Belo Horizonte, 1993.
[2] Fundada por Edna Cardozo Dias
[3] FAVRE, David. The Gathering Momentum Journal of Animal Law. Vol. 01.2005.p.02.
[4] SINGER, Peter. Libertação animal. Porto Alegre. Lugano: 2004. Pag.4.
[5] REAGAN, Tom. The Struggle for animal rights. Clarks Summit: Internacional Society for Animal Rights, 1987, pag. 46-47.
[6] GORDILHO, Heron Santana. Abolicionismo animal. Editora Evolução. Salvador: 2009. Pag. 75.
[7] MARGUENAU Jean-Pierre. L’animal em droit privè. Limoges presses Universitaires de France, 1992. Pag. 392.
[8] GORDILHO, José de Santana Gordilho. Abolicionismo animal. Editora Evolução. Salvador: 2009. Pag. 76.
[9] DIAS, Edna Cardozo. Tutela jurídica dos animais. Produção independente. Belo Horizonte: 2020 pag. 73.
[10] SARLET, Ingo Wolfgang e FENTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. In Revista Brasileira de direito animal. Ano 2. N. 3, jul/dez. salvador. Evolução, 2007, pag. 69.
[11] DIAS, Edna Cardozo. Tutela jurídica dos animais. Editora Mandamentos. Belo Horizonte: 2000, pag. 84.
[12] LIMA, Fernando Bezerra de Oliveira. “Habeas corpus para animais: admissibilidade do HC Suíça” in Revista Brasileira de Direito animal. Ano 2 n.3 jul/dez, 2007. Ed. Evolução, Salvador Bahia.
[13] SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Animais em Juízo, direito, personalidade jurídica e capacidade processual. Ed. Evolução, Salvador, 2012.
[14] ATAIDE, Vicente de Paula Jr. “Capacidade processual dos animais, a judicialização do Direito Animal no Brasil”, Ed. ABDR, Curitiba 2022. Pag. 283.
[15] https://www.gov.br/mma/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/quem-e-quem-1/secretaria-de-biodiversidade
[16] https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/ppa-participativo/ppa-participativo-saiba-mais/cartilha