Com a palavra, os oprimidos: refletindo sobre os diversos modos de pensar os direitos animais

Os vários autores animalistas concordam que o tratamento dos animais precisa mudar, mas têm abordagens diferentes para justificar essa crença. Isso inclui questões sobre direitos animais, o status moral dos animais e a resolução de conflitos entre animais e seres humanos. No presente artigo, abordarei brevemente como a questão animal aparece na visão de Singer e na visão de Regan e, adiante, me deterei sobre o enfoque das capacidades de Nussbaum, o qual, na minha visão, dá um passo importante no sentido de incluir outros animais sob o guarda-chuva da proteção moral. Por fim, voltarei-me para a Teoria do Ponto de Vista de Josephine Donovan, sugerindo que ela vai ainda além, na medida em que se dispõe a escutar a voz daqueles cujos direitos são sistematicamente violados.

O direito animal começou a ser discutido, na Filosofia, especialmente no campo da Filosofia moral nas vertentes do consequencialismo utilitarista, de Peter Singer, e da deontologia kantiana de Tom Regan (BARBOSA-FOHRMANN, AUBERT, 2022). 

Na visão de Peter Singer (1993; 2015), o utilitarismo consequencialista desempenha um papel central. O utilitarismo avalia a moralidade das ações com base nas consequências positivas ou negativas que elas geram em termos de felicidade e sofrimento. Os interesses dos seres sencientes, incluindo animais, devem ser igualmente considerados. Singer propõe que animais sencientes merecem uma igualdade de consideração de interesses, independentemente de sua inteligência ou capacidades. Ele destaca que nossa preocupação com outros seres não deve depender de suas habilidades, mas sim de seus interesses.

Para os animais sencientes, Singer enfatiza o dever de evitar práticas que causem sofrimento desnecessário, baseado em uma igual consideração de seus interesses. Singer adota uma abordagem utilitarista para tratar do tema, centrada na ideia de igualdade de consideração de interesses, e não em direitos:

Por que é surpreendente que eu tenha pouco a dizer sobre a natureza dos direitos? Isso só seria surpreendente para quem supõe que minha defesa dos animais é baseada em direitos e, em particular, na ideia de estender direitos aos animais. Mas esta não é, de forma alguma, minha posição. Tenho pouco a dizer sobre direitos porque os direitos não são importantes para o meu argumento. Meu argumento é baseado no princípio da igualdade, sobre o qual tenho muito a dizer. Minha posição moral básica (como minha ênfase no prazer e na dor e minha referência a Bentham podem ter levado os leitores a suspeitarem) é utilitarista. Faço muito pouco uso da palavra “direitos” em Libertação Animal, e poderia facilmente tê-la dispensado por completo. Acho que o único direito que atribuo aos animais é o “direito” à igual consideração de interesses, e tudo o que é expresso ao falar de tal direito poderia igualmente ser dito pela afirmação de que os interesses dos animais devem ter igual consideração com relação a interesses similares humanos. (Olhando para trás, lamento ter permitido que o conceito de direito se intrometesse em meu trabalho tão desnecessariamente neste ponto; eu teria evitado mal-entendidos se não tivesse feito essa concessão à retórica moral popular.) (SINGER, 1978, p. 22)

Ainda assim, apesar de não advogar por direitos morais aos animais, Singer reconhece, por outro lado, a importância de advogar pelos direitos legais dos animais quando se trata de maneiras práticas de melhorar suas vidas. Em uma entrevista concedida no II Congresso Internacional de Direitos Animais do Centro de Estudos sobre Animais e o Antropoceno (CEAA), Singer (2023) mencionou seu envolvimento no Great Ape Project que ele lançou no início dos anos 1990 com Paola Cavalieri. O projeto tinha como objetivo estabelecer uma declaração de direitos básicos para os grandes primatas, argumentando que não há justificativa para não lhes conceder proteção legal se concedermos direitos legais a todos os seres humanos. 

Singer ainda destacou que recentemente ele, juntamente com Gary Comstock e Adam Lerner, apresentaram um parecer de amicus curiae a um tribunal em Nova York em nome de Happy, uma elefanta do Zoológico do Bronx. Apesar do nome enganoso, Happy, segundo ele, viveu uma vida miserável e isolada por anos. Assim, o Nonhuman Rights Project, liderado por Steven Wise, à época do referido Congresso, entrou com um pedido de habeas corpus em nome de Happy, que Singer esperava que fosse aceito, pois em sua visão, estabelecer direitos para os grandes primatas contribuiria para a extensão dos direitos de outros animais; em outras palavras, ele não ficaria satisfeito apenas com a melhoria das condições de vida dos grandes primatas, mas acreditava que se lhes fossem concedidos direitos, isso demonstraria que outros animais também são indivíduos com vidas que eles próprios consideram boas ou ruins.

Já Tom Regan (1983), que trabalha no campo da deontologia kantiana, sustenta que indivíduos que possuam crenças e desejos, percepção, memória, um senso de futuro, uma vida emocional – com sentimentos de prazer e dor –, preferências, interesses sociais, a capacidade de buscar seus desejos e objetivos, uma identidade psicofísica ao longo do tempo, e um senso de avaliação sobre a qualidade de sua vida experiencial – e que independe de eventual utilidade para terceiros – são “sujeito-de-uma-vida”, i.e., possuem um valor inerente, não podendo ser percebidos como meros receptáculos. Nesse sentido, são todos iguais, não havendo distinção entre o valor de um animal de produção e de um animal de vida livre. 

Regan (2006) considera que os critérios essenciais para identificar um “sujeito-de-uma-vida” são notáveis, já que eles conseguem ter êxito em explicar por que somos moralmente semelhantes, ou seja, por que temos igualdade moral. O autor não afirma que todos os animais atendem a esses critérios, mas que aqueles que o fazem possuem direitos da mesma forma que os animais humanos.

Na lista desses tipos de animais, o autor engloba os mamíferos que têm mais de um ano de idade, assim como as aves. Ele não fecha a questão quanto à possibilidade de estender essa classificação a outros animais, como os peixes, por exemplo, mas sustenta que temos responsabilidades imediatas para com os animais que se enquadram nesse grupo, de maneira análoga às obrigações que temos para com os seres humanos (REGAN, 2006). 

A perspectiva de Regan (1983; 2006) está firmemente enraizada em uma visão não consequencialista fundamentada em direitos. Essa postura o coloca em oposição direta ao utilitarismo em todas as suas formas. Ele afirma nossa obrigação de adotar um estilo de vida vegetariano independe de outras pessoas optarem por fazer o mesmo, já que pouco importa as consequências dos resultados que nossas ações possam gerar, mas tão somente sua retidão moral. A justificativa por trás disso não reside, em outras palavras, nas consequências do ato, mas sim na violação dos direitos dos animais perpetrada pela indústria de alimentos. Essa mesma linha de raciocínio se estende a outros domínios da exploração animal, abrangendo experimentação científica, a indústria do vestuário, o setor de entretenimento – que inclui circos e zoológicos, por exemplo – e inúmeras outras atividades responsáveis por transgredir os direitos daqueles animais que, assim como os humanos, possuem o status de “sujeitos-de-uma-vida”.

Martha Nussbaum apresenta, também, uma visão interessante sobre a Ética Animal. Primeiro porque ela aloca a questão animal como uma questão de justiça e, segundo, porque o olhar que ela propõe para as capacidades, para as potencialidades, permite que pensemos sobre os interesses e direitos não apenas de animais vertebrados sencientes, como também daqueles invertebrados que, diferente de casos como o polvo, por exemplo, ainda não tiveram a senciência comprovada (AUBERT, 2022). 

Nussbaum (2013) desenvolve, nessa medida, um enfoque baseado em capacidades ao tratar de questões relacionadas a animais não humanos. Embora essa abordagem, nos moldes como foi concebida por Amartya Sen (1980; 1981, 1993), não contemplasse animais não humanos, a autora a expande para considerar a dignidade da vida das criaturas não humanas criando, de mais a mais, uma teoria parcial de justiça. A perspectiva das capacidades, como delineada por Sen (1980; 1981, 1993), avalia o que é vantajoso para um indivíduo com base em sua capacidade real de realizar várias “funções”. Isso difere de outras abordagens que se concentram em utilidade pessoal ou posse de bens primários, como a teoria de justiça de Rawls (1999).

Influenciada por Aristóteles (WOLFE, 2008; ARISTÓTELES, 2014), Nussbaum acredita que todas as formas complexas de vida têm algum valor que desperta curiosidade e interesse. Assim, é benéfico para seres não humanos desenvolverem-se de acordo com sua natureza e impedi-los de florescer, ao contrário, é errado. Ela vê essa abordagem como mais eficaz do que as abordagens contratualistas ou utilitaristas, pois reconhece a diversidade nas formas de vida e busca permitir que cada ser floresça de acordo com seu tipo (NUSSBAUM, 2013). E apesar de sua proposta ser bastante inclusiva e interessante no que toca aos animais não humanos – incluindo, portanto, seres não sencientes –, acredito ser possível ir além. 

A Teoria do Ponto de Vista desenvolvida por Josephine Donovan (2006; 2022; 2023) lida com a questão sobre direitos a partir da perspectiva daquele que é vítima da exploração. Originalmente desenvolvida pelo marxista Georg Lukács (1971), referida teoria destacava o proletariado como um grupo que detinha uma perspectiva reprimida sobre sua própria opressão (DONOVAN, 2006; 2022; 2023). 

Lukács (1971) afirma que quando um sujeito é tratado como objeto, isso evoca uma consciência crítica nascida da constatação de que ele não é apenas uma coisa. Na linha de produção capitalista, de acordo com Lukács, o trabalhador é desumanizado, transformado em mercadoria e reduzido a um número. No entanto, esse processo de desumanização não altera o fato de que a humanidade e a essência do trabalhador permanecem inalteradas por essa mercantilização. No caso dos animais, eles também são objetificados, transformados em mercadorias e números no processo de produção de carne e dentro dos laboratórios. Isso ocorre de maneira ainda mais literal do que com os trabalhadores humanos, cujos corpos não são literalmente transformados em objetos inanimados e consumíveis (DONOVAN, 2023). 

As feministas, segundo conta Donovan (2023), se apropriaram da teoria de Lukács para pensar sobre a violência de gênero. Carol Gilligan (2010), nessa medida, conduziu entrevistas com adolescentes que expressaram um ponto de vista divergente e subversivo em relação à teoria dominante de desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg. Enquanto o modelo masculino de Kohlberg enfatizava direitos e regras, o raciocínio moral das meninas estava mais centrado no cuidado, responsabilidade e relacionamentos. Nesse contexto, a teoria do cuidado pode ser entendida como uma teoria do ponto de vista, semelhante à perspectiva apresentada por Georg Lukács. No contexto marxista, o proletariado é visto como detentor de um ponto de vista suprimido em relação à sua própria opressão. Da mesma forma, as meninas entrevistadas por Gilligan demonstraram uma consciência crítica implícita, questionando o sistema que reprimia suas vozes discordantes. 

Ao aplicar a ideia de pontos de vista à ética animal, Donovan (2006; 2022; 2023) desenvolve uma abordagem semelhante à teoria marxista do ponto de vista, reconhecendo que os animais também têm perspectivas importantes. Isso acrescenta uma dimensão política crucial à questão da subjetividade animal.

Aplicar a teoria do cuidado/ponto de vista à ética animal significa, por fim, ouvir as vozes dos animais em relação ao sistema que os explora. Da mesma forma que as vozes das mulheres são subversivas ao patriarcado, as vozes dos animais desafiam o sistema especista e exploratório (DONOVAN, 2023). 

A complexidade reside na interpretação dessas vozes, mas pesquisadoras como Eva Meijer (2019a; 2019b), sob influência de autores preocupados com a inclusão política de animais como Sue Donaldson e Will Kymlicka (2011), vem revelando que a comunicação interespecífica pode ocorrer de modos mais complexos do que imaginávamos, se estivermos dispostos a (i) ouvir os animais não humanos; (ii) recusar o excepcionalismo humano que considera que apenas animais humanos são sujeitos comunicativos; (iii) recuperarmos nossa própria animalidade, compreendendo que nossas próprias características são, dentro da teoria darwiniana da evolução, produto de continuações entre os diversos animais, e não de rupturas. 

É preciso, portanto, pensarmos sobre os direitos dos animais a partir de suas próprias perspectivas, preparados para percebemos as relações de poder e opressão marcantes dos relacionamentos interespecíficos, e para integrar os animais em nossas comunidades políticas de modos criativos, abertos para imaginarmos novos modos de ser com aqueles que consideramos como radicalmente outros (PLUMWOOD, 1995).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula; AUBERT, Anna Caramuru Pessoa. Eles sofrem? Por um novo tratamento moral dos animais não humanos. RJLB, Lisboa, ano 8, n. 1, 2022.

DONALDSON, Sue; KYMLICKA, Will. Zoopolis: A Political Theory of Animal Rights. New York: Oxford Press, 2011.

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LUKÁCS, Georg. History and Class Consciousness. Trad. Rodney Livingstone. Cambridge, MA: MIT Press, 1971.

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NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da Justiça: Deficiência, Nacionalidade, Pertencimento à Espécie. Trad. Susana de Castro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

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WOLFE, Carry. Flesh and Finitude: Thinking Animals in (Post) Humanist Philosophy. The Johns Hopkins University Press, v. 37, n. 3, p. 8-36, 2008. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/25195184?read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents. Acesso em: 22 jun. 2021.


ANNA CARAMURU AUBERT

Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em regime de Cotutela com a Universität Münster (Alemanha). Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-graduada em Direitos Animais pela Universidade de Lisboa. Diretora acadêmica do Centro de Estudos sobre Animais e o Antropoceno (CEAA). Diretora administrativa da Associação Nacional de Advogados Animalistas (ANAA). Professora de Direito Animal no Centro de Estudos Animalistas e na Escola Superior de Ecologia Integral, Justiça e Paz Social. Pesquisadora associada ao Núcleo de Teoria sobre Direitos Humanos da UFRJ, e ao projeto Global Crossings, da Cátedra Jean Monnet, na Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: annacaramurup@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2005170752734528.

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