Concurso formal e material no crime de maus-tratos aos animais

Introdução

O crime de maus-tratos contra animais, previsto no artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98), contrassenso, não se refere apenas à conduta de ferir um animal. A Resolução n. 1.236/18 do Conselho Federal de Medicina Veterinária traz um rol de condutas passíveis de serem enquadradas em maus-tratos, tais como: abandonar um animal, mantê-lo acorrentado, deixar de alimentar, dar água, abrigo ou assistência veterinária, dentre muitas outras.  

Quando há dois delitos em apuração em uma mesma ação penal, o Poder Judiciário se depara com o chamado concurso de crimes, que é a expressão utilizada para designar as hipóteses em que o agente, mediante, uma, duas ou mais condutas, comete duas ou mais infrações penais. À primeira vista, se o agente cometeu dois ou mais delitos, deveria responder por todos, somando-se as penas. O legislador, contudo, percebendo que ocorreriam inúmeros exageros no montante da reprimenda, estabeleceu regras quanto à sua fixação nos casos de concurso de crimes, visando tornar mais justa a pena final.[1]

O presente artigo busca examinar os institutos de concurso formal e material com relação ao crime de maus-tratos aos animais, e analisar alguns casos e o entendimento da jurisprudência a respeito. 

Concurso material 

Dá-se o concurso material seguindo-se o disposto no art. 69 do Código Penal: 

 Art. 69, CP - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela. (...) § 2º - Quando forem aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado cumprirá simultaneamente as que forem compatíveis entre si e sucessivamente as demais.[2]

No caso do concurso material, somam-se as penas na sentença se ambos os delitos estiverem sendo apurados na mesma ação penal, sendo necessária, portanto, alguma forma de conexão entre as condutas. Ressalta-se que o concurso material pode ser: a) homogêneo: quando os crimes cometidos forem idênticos, ou b) heterogêneo: quando os crimes conexos forem diferentes.

Importante destacar que concurso material não se confunde com crime continuado. Neste, o sujeito ativo também comete dois ou mais crimes por meio de duas ou mais ações, porém, trata-se de crimes da mesma espécie, aplicando-se, deste modo, uma só pena, com aumento de 1/6 a 2/3.

A soma das penas só ocorrerá diante de crimes com a mesma espécie de sanção, caso contrário, o juiz fixará cada uma das penas individualmente, sendo que o réu cumprirá primeiro a pena de reclusão e depois a de detenção.

Com relação ao crime de maus-tratos a animais, previsto no art. 32 da Lei n. 9.605/98, este assim estabelece:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. [3]

Neste caso, um exemplo de concurso material seria o agente praticar dois ou mais núcleos do tipo (ex. ferir e abandonar) contra um ou mais animais. Importante mencionar que o crime de maus-tratos contra cão ou gato (modalidade qualificada), disposto no §1º-A do art. 32, deixou de ser crime de menor potencial ofensivo, saindo, portanto, da esfera dos Juizados Especiais Criminais.

Todavia, caso o sujeito cometa crimes conexos de maus-tratos contra um cão e contra um animal silvestre, pode ser processado perante a justiça comum criminal por ambos (ADI 5264 – STF), em que cumprirá inicialmente a pena de reclusão, referente ao crime contra o cão, seguida da pena de detenção, com relação ao crime contra o animal silvestre. 

Na hipótese do §2º do art. 69, CP, “quando forem aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado cumprirá simultaneamente as que forem compatíveis entre si e sucessivamente as demais”, norma válida apenas para o crime de maus-tratos contra animal (exceto cão e gato), por reger-se pelas regras da Lei n. 9.099/95 (Juizados Especiais Criminais), em que a modalidade de pena restritiva de direitos é admitida em condenações de até 4 anos, desde que não haja emprego de violência.


Concurso formal

Já o concurso formal rege-se pelo art. 70 do Código Penal, que assim dispõe:

  Art. 70, CP - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior. Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.

Deste modo, ocorre o concurso formal quando o agente, ao praticar uma única ação (comissiva ou omissiva) pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, em que o juiz aplicará uma só pena, aumentada de 1/6 a ½. 

Citando-se como exemplo relacionado ao crime qualificado de maus-tratos a animais, configura-se concurso formal homogêneo - diante de crimes idênticos -, a hipótese em que o sujeito, dolosamente, atropela e fere dois cães na estrada. Por outro lado, caracteriza-se concurso formal heterogêneo (delitos não idênticos) o caso em que o sujeito dolosamente atropela dois cães, causando a morte instantânea de um deles (art. 29, Lei 9.605/98) e ferimentos no outro (art. 32, §1-A, Lei 9.605/98). 

Com relação a esta última situação, para delitos não idênticos a lei determina que seja aplicada a pena do crime mais grave, no caso a ação de ferir o animal, aumentada também de 1/6 a ½. Nota-se, neste caso, a patente violação da regra da proporcionalidade, uma vez que a pena privativa de liberdade abstratamente cominada para a conduta delitiva de matar um animal (exceto a morte decorrente de maus-tratos) é de detenção, de 6 meses a um ano, ao passo em que, para a conduta delitiva de ferir um cão, é de 2 a 5 anos de reclusão.

De qualquer forma, em ambos os casos, ser-lhe-á cominada pena de 5 anos (supondo-se pela pena máxima do crime idêntico/mais grave) e, na sequência, aumenta-a de 1/6, chegando ao montante final de 5 anos e 10 meses.

Aplicação pelo Judiciário Brasileiro do concurso de crimes em delitos de maus-tratos aos animais 

Analisaremos, brevemente, alguns casos e o entendimento da jurisprudência a respeito do concurso de crimes contra animais.

Concurso material do crime do artigo 32, § 2º, da Lei 9.605/98: 

Apelação Criminal – Maus-tratos contra fauna doméstica e uso de substância nociva ao ambiente – Artigos 32, § 2º, e 56, da Lei 9.605/98 – Ré que, na condição de responsável por acolher animais abandonados para colocá-los em adoção, provocou, dolosamente, a morte de 37 animais - Condenação – Necessidade - Prova robusta acerca da materialidade e autoria delitiva – Laudos periciais contundentes em harmonia com os relatos das testemunhas, corroborando a prática das gravíssimas infrações – Penas – Exasperação – Necessidade – Cúmulo material mantido diante da inequívoca da habitualidade criminosa, que não se confunde com a continuidade delitiva – Negado provimento ao apelo defensivo, provendo-se o ministerial. (TJ-SP 00172472420128260050 SP 0017247-24.2012.8.26.0050, Relator: Rachid Vaz de Almeida, Data de Julgamento: 09/11/2017, 10ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 13/11/2017)

Este é o caso mais emblemático do Brasil, o caso “Dalva”, Dalva Lina da Silva, que ficou conhecida como a serial killer de animais, apresentava-se como protetora acolhendo animais domésticos em situação de abandono e os encaminhando para adoção. Ela começou a chamar a atenção de organizações de proteção dos animais diante da rapidez com que conseguia encontrar um lar adotivo em relação ao número de animais que recebia por dia. Em certa ocasião, um detetive particular viu Dalva colocar cinco sacos de lixo em frente a um imóvel. Dentro estavam os corpos de trinta e três gatos e quatro cachorros.

Segundo a acusação, Dalva feriu 37 animais domésticos (cães e gatos) que morreram em decorrência dos maus-tratos. Além disso, ela usou cetamina sem receita do produto ou licença da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para matar os animais. A substância é perigosa e prejudicial à saúde humana e ao meio ambiente.

Em primeira instância a ré foi condenada às penas de 12 (doze) anos, 06 (seis) meses e 14 (quatorze) dias de detenção, mais o pagamento de 444 (quatrocentos e quarenta e quatro) dias-multa, pela prática do crime do artigo 32, § 2º, da Lei n.º 9.605/98, por 37 (trinta e sete) vezes, em concurso material. O entendimento do juízo de primeiro grau pela aplicação do concurso material ao caso concreto, fundou-se na constatação de práticas reiteradas (mais de uma ação) dos delitos, em contextos distintos, que revelou uma delinquência habitual da acusada, restando ausentes os requisitos autorizadores da continuidade delitiva. Vejamos:

Entre os crimes tipificados no artigo 32 da Lei 9.605/98, é de ser reconhecido o concurso material. Numa análise perfunctória, poderia parecer que, em virtude de terem sido os animais mortos, todos, com o emprego do mesmo modus operandi, no mesmo local e em circunstâncias temporais mais ou menos semelhantes, a conduta da acusada ilustraria um caso clássico de crime continuado. Essa conclusão não resiste ao exame cuidadoso dos fatos, por motivos diversos. À acusada não se imputa somente o crime de ferir animais domésticos, agravado pelo resultado morte. À acusada se imputa, também, o de praticar maus-tratos. Esses maus-tratos, como se viu, foram cometidos de diversas maneiras. Aos animais faltava alimentação, assistência veterinária, medicação para prevenção de infestação por vermes, pulgas e carrapatos e vacinação. Conforme os laudos juntados, não foi encontrado qualquer conteúdo, além de muco, no sistema gástrico de alguns dos corpos, e, em outros, como a prova oral revelou, foram constatados vestígios de alimentos que demonstram que os gatos passavam fome há dias. (...) Os maus-tratos já vinham sendo praticados, reiteradamente, pela acusada, de maneiras absolutamente distintas. Deixar de alimentar é uma coisa. Privar de cuidados médicos, outra. Matar, outra completamente diferente. Essa diversidade de modos de execução, por si só, já seria suficiente para afastar a alegação de continuidade. Não é só. As mortes, como também demonstrou a perícia, ocorreram em momentos diversos. (.. A desconfiança em torno da ré já existia seis anos antes dos fatos, e a prova revelou que, somente nos vinte dias em que foi observada pelo detetive ouvido em juízo, ela recebeu mais de duas centenas de animais. Diante disso, não é demasiado afirmar que centenas de animais foram mortos pela acusada. Mais não é preciso para se concluir que os fatos imputados à acusada não constituíram um episódio isolado em sua vida. Também o meio empregado para matar os animais comprova que a ré já praticava, habitualmente, fatos idênticos aos aqui apurados. (...) A ré, contudo, empregando o mesmo método, matou mais um, mais dois, mais três, até exterminar trinta e sete animais. (...) Nesse contexto, beneficiá-la com o reconhecimento da continuidade configuraria verdadeiro despautério. (...) É verdade que o reconhecimento do concurso material, na hipótese, implicará a aplicação de pena privativa de liberdade talvez sem precedentes em casos de maus-tratos contra animais. Mas a pena há de se ajustar à conduta do agente e o comportamento da acusada é igualmente inédito.

Segundo entendimento das cortes superiores, não há crime continuado quando configurada habitualidade delitiva ou reiteração criminosa [5]. O caso “Dalva”, em segunda instância, teve a tese do concurso material homogêneo ratificada e houve a elevação da pena para 16 (dezesseis) anos, 06 (seis) meses e 26 (vinte e seis) dias de detenção e pagamento de 646 (seiscentos e quarenta e seis) dias-multa, além da condenação em 01 (um) ano de reclusão, em regime semiaberto, e pagamento de 10 (dez) dias-multa, pela prática do crime do artigo 56, caput, da lei 9.605/98.

Concurso material dos crimes previstos no artigo 32, § 1º-A e § 2º da Lei 9605/98 e artigo 16, § 1º, inciso IV, da Lei nº 10.826/03

Apelação criminal. Crime ambiental. Maus-tratos de animal doméstico majorado pela morte (art. 32, § 1º-A e § 2º, da Lei nº 9.605/98) e posse de arma de fogo com numeração suprimida (art. 16, § 1º, inciso IV, da Lei nº 10.826/03), em concurso material (art. 69, caput, do Código Penal). Recurso defensivo. Mérito. Absolvição quanto ao crime de maus-tratos de animal ao argumento de atipicidade da conduta por ausência de dolo. Não acolhimento. Elemento subjetivo manifesto, facilmente verificado pela dinâmica da execução do crime. Apelante que, a pretexto de expulsar cachorros de sua propriedade, efetuou um disparo de arma de fogo na direção do animal, atingindo-o em região vital e ceifando-lhe a vida. Dolo caracterizado. exclusão da culpabilidade ao fundamento de que "estava sob efeito de medicação". Impossibilidade. Ausência de comprovação da referida alegação. posse de arma de fogo com numeração suprimida. Pretensão absolutória. Alegação de desconhecimento da supressão do número de série do armamento. Inviabilidade. Arma de fogo apreendida em poder do apelante. Condenação mantida. Pena e regime de cumprimento. Pleito de fixação da pena-base no mínimo legal. Prejudicado. Reprimendas fixadas no piso. Exclusão da majorante atinente à morte do animal quanto ao crime de maus-tratos. Impossibilidade. Nexo de causalidade evidenciado. Morte do cão que decorreu do disparo de arma de fogo efetuado pelo apelante na direção do animal. Majorante adequadamente reconhecida. Requerimento de fixação de regime aberto para cumprimento da pena corporal. Não acolhimento. Montante da pena corporal aplicada que impõe regime intermediário. Inteligência do artigo 33, § 2º, 'b', do Código Penal. Substituição da pena corporal por restritivas de direitos. ausência de preenchimento dos requisitos legais. Pena corporal superior ao limite legal de quatro anos previsto pelo artigo 44 do Código Penal. Apelo desprovido. (TJ-SP - APR: 15011624620228260628 Itapecerica da Serra, Relator: Erika Soares de Azevedo Mascarenhas, Data de Julgamento: 12/05/2023, 15ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 12/05/2023)

O réu, neste caso, munido de arma de fogo que possuía em sua residência, efetuou um disparo contra o animal doméstico (um cachorro) que estava nas imediações de sua propriedade. O animal foi socorrido, submetido a cirurgia, mas não resistiu e veio a óbito.

Trata-se de crime qualificado, porquanto o animal submetido aos maus-tratos foi um cachorro, nos termos do que estabelece o artigo 32, § 1º-A, da Lei n.º 9.605/98, acarretando, inclusive, a proibição da guarda de cães ou gatos pelo mesmo período da reprimenda privativa de liberdade. A majorante, prevista no artigo 32, § 2º, foi aplicada tendo em vista que foi o disparo de arma de fogo efetuado pelo réu que provocou o óbito do animal. E a arma utilizada no crime estava com a numeração de série suprimida, portanto o réu também praticou o delito previsto no artigo 16, § 1º, inciso IV, da Lei n.º 10.826/2003 (Estatuto do desarmamento).

O Tribunal paulista entendeu que as condutas praticadas pelo réu decorreram de desígnios autônomos, e que os crimes eram independentes, portanto, aplicou-se a regra insculpida no artigo 69, caput, do Código Penal, concurso material heterogêneo, e as penas foram somadas, sendo condenado a 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, em regime semiaberto, e ao pagamento do valor correspondente a 21 (vinte e um) dias-multa, por infração ao artigo 32, § 1º-A e § 2º, da Lei n.º 9.605/98; e artigo 16, § 1º, inciso IV, da Lei n.º 10.826/03, ambos na forma do artigo 69, caput, do Código Penal. 

Concurso formal entre o crime art. 29, § 1º, III, e art. 32, § 2º, ambos c.c. art. 15, II, alíneas a e i, todos da Lei nº 9.605/98

Apelação. Lei nº 9.605/98. Transporte de espécime nativa da fauna silvestre, sem licença ou autorização da autoridade competente e maus tratos, com a morte de três dos quatro animais transportados, durante o período noturno e visando a obter vantagem pecuniária. Autoria e materialidade comprovadas. Preliminares afastadas. Alegação de flagrante preparado e falta de dolo. Teses já analisadas e rechaçadas na sentença. Participação de menor importância não caracterizada. Princípio da consunção não aplicável; condutas distintas. Condenação correta. Penas-base justificadamente fixadas acima do mínimo e majoração de 1/3 adequada em razão da morte de três animais. Afastamento do aumento relativo ao período noturno. Concurso material afastado, reconhecido o concurso formal, com aumento de 1/6 da maior pena. Regime aberto adequado. Substituição da pena privativa por duas restritivas de direitos adequada, porém pena de prestação pecuniária fixada em 5 salários mínimos sem justificativa. Redução para um salário-mínimo. Recurso parcialmente provido. (TJ-SP - APL: 00883877920168260050 SP 0088387-79.2016.8.26.0050, Relator: Francisco Bruno, Data de Julgamento: 31/01/2019, 10ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 04/02/2019)

Segundo a denúncia, a ré adquiriu, guardava e transportava em uma mochila para expor à venda quatro espécimes nativas da fauna silvestre (quatro iguanas), sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. Nas mesmas circunstâncias de tempo e local, a ré do mesmo modo praticou atos de abuso e maus-tratos contra as iguanas. Após resgatadas, foram encaminhadas a um Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres, porém três delas foram a óbito. Por fim, constou-se ainda que a ré praticou os delitos durante o período noturno e com fim de obter vantagem pecuniária.

Em primeiro grau, a ré foi condenada à pena total de dois anos, dois meses e dezesseis dias de detenção e 128 dias-multa pela prática dos crimes previstos no art. 29, § 1º, III, e art. 32, § 2º, ambos [6] c.c. art. 15, II, alíneas a e i, todos da Lei n.º 9.605/98, na forma do artigo 69 do Código Penal (concurso material) 

Todavia, em segunda instância, o Tribunal entendeu que não houve concurso material, mas formal próprio, tendo em vista que o transporte e os maus-tratos decorreram da mesma conduta (transporte dos animais em uma mochila), e aumentou-se a maior pena privativa de liberdade para 1/6, resultando em dois anos, um mês e vinte e três dias de detenção e 93 dias-multa.

Concurso formal entre os crimes dos artigos art. 29, III, e 32, caput, c/c § 2º, da Lei nº 9.605/1998

Apelação criminal. Receptação. Crimes ambientais. Transporte de espécime da fauna silvestre sem autorização. Maus tratos. Resultado morte de um exemplar. Recurso da defesa. Desistência. Homologada. Recurso do ministério público. Dosimetria. Unificação. Readequada. I - Se pessoalmente intimado o réu deixou para a Defesa técnica decidir sobre a interposição do recurso, se esta apelou por termo, mas posteriormente asseverou que em se tratando de réu confesso e dosimetria adequada, concordava com a sentença, deve ser homologada a desistência do apelo, não configurado conflito de vontades. II - Não há que se falar no reconhecimento de maus antecedentes quando não há qualquer sentença condenatória anterior em desfavor do réu, mas um processo arquivado (art. 395 do CPP) e outro em que foi declarada extinta a punibilidade na forma do art. 89, § 5º, da Lei nº 9.099/1995. III - As circunstâncias em que o grande número de aves foi transportada sem autorização, em pequenas gaiolas, dentro de malas, sem ventilação ou água, embora sérias e graves, não ultrapassam as elementares dos tipos pelos quais o réu foi condenado (art. 29, III, e 32, caput, c/c § 2º, da Lei nº 9.605/1998) e por isso não podem fundamentar majoração da pena-base. IV - Se o réu adquiriu e ocultou 245 (duzentas e quarenta e cinco) aves silvestres, as transportou sem autorização, optando conscientemente em fazê-lo sob péssimas condições, impingindo maus tratos aos animais, com resultado morte de um deles, cada uma das séries de delitos deve ser unificada pela regra do concurso formal. V - Entre as séries, considerando que os crimes ambientais foram praticados sob a mesma ação, porém com desígnios autônomos, a unificação se dará pelo concurso formal impróprio, em concurso material com o crime de receptação. VI - Homologada a desistência do recurso da Defesa. Conhecido e parcialmente provido o apelo do Ministério Público. (TJ-DF 07100893720218070001 1694854, Relator: NILSONI DE FREITAS CUSTODIO, Data de Julgamento: 26/04/2023, 3ª Turma Criminal, Data de Publicação: 09/05/2023)

No caso em tela, o réu foi surpreendido por Agentes da Fiscalização da Receita Federal e Agentes da Polícia Federal, ao chegar de um voo no Aeroporto Internacional de Brasília, transportando, de forma livre e consciente, sem autorização/licença prévia do órgão competente, no interior de três malas, 245 (duzentos e quarenta e cinco) passeriformes da fauna silvestre nativa, da espécie Sicalis Flaveola, conhecidos vulgarmente por “canários da terra”, todos acondicionados em pequenas gaiolas, sendo que uma das aves já se encontrava morta. 

O réu admitiu que comprou os animais de uma pessoa e que pretendia vendê-las na Feira do Rolo do Recanto das Emas/DF, pelo valor aproximado de R$120,00 a R$150,00 reais por espécime.

Os peritos criminais do Instituto de Criminalística, ao examinarem os 245 passeriformes e petrechos, regularmente apreendidos e encaminhados ao CETAS/IBAMA/DF, constataram que 244 dessas aves se encontravam em desacordo com a legislação e com os regulamentos vigentes, tanto no que se refere à criação, como à guarda de espécimes da fauna silvestre em cativeiro, haja vista a ausência de marcação individual dos espécimes e de documentos comprobatórios de sua origem legal.

Os peritos concluíram, ainda, que a forma do acondicionamento das aves em malas era inadequada ao bem-estar animal, em razão da reduzida aeração, da característica de ambiente claustrofóbico, das possíveis situações de queda e de temperaturas extremas a que a mala pode ser submetida, da falta de água, alimento e poleiro disponíveis, dentre outros aspectos. Tais fatores evidenciam a prática do crime de maus-tratos contra esses 245 passeriformes, sendo que um deles foi encontrado morto.

A denúncia foi apresentada atribuindo ao acusado a autoria dos delitos previstos no artigo 29, § 1º, inciso III (transporte de espécime da fauna silvestre sem autorização), § 4º, inciso III (durante a noite), em concurso material (art. 69 do CP) com o crime disposto no artigo 32, caput (maus tratos a 244 aves), c/c § 2º (morte de uma ave), todos da Lei n.º 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), em concurso material com o artigo 180, caput, do Código Penal (receptação dolosa configurada pela aquisição e ocultação de aves com a finalidade de vendê-las).

Em primeira instância, o réu foi condenado pela prática dos crimes do artigo 29, § 1º, inciso III (por 244 vezes), artigo 32, caput, c/c § 2º (por 245 vezes), ambos da Lei n.º 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), além do artigo 180, caput, do Código Penal, e uma vez que os delitos foram praticados no mesmo contexto, o juízo de primeiro grau entendeu pela aplicação do concurso formal próprio (art. 70 do Código Penal), aplicando a pena mais grave na fração máxima.

Em segunda instância, o Tribunal considerou que o réu agiu com desígnios autônomos em relação a cada uma das sequências de crimes praticados, determinando que os crimes ambientais foram praticados sob a mesma ação, em concurso formal impróprio, e, em concurso material com o crime contra o patrimônio. 

Conclusão

Os institutos dos concursos formal e material para os crimes relacionados aos maus-tratos de animais não humanos, deve considerar, sobretudo, que cada animal é sujeito passivo do crime tipificado no art. 32 da Lei 9.605/1998, seja na forma do “caput”, seja na sua forma do § 1°-A. Deste modo, na ocorrência de mais de um animal vitimado, estaremos diante de mais de um crime.

Para tanto, é de suma importância que os órgãos policiais e ambientais, na fase dos processos investigativos, identifiquem e definam de maneira pormenorizada todas as condutas e os respectivos desígnios, a fim de obstar entendimentos reducionistas que não considerem o verdadeiro impacto das condutas delituosas.

De outro lado, cabe aos operadores do Direito, ante a total ausência de uma resposta eficaz do Estado no que diz respeito à proteção dos animais, fazer estudo minucioso dos dispositivos da Lei 9.605/98, para que se deixe de associar crimes contra a fauna a crimes menores.

Devem ser consideradas todas as vinculações e extensões que envolvem os crimes de crueldade contra os animais, como a organização criminosa do tráfico de animais silvestres, que, além da crueldade contra os animais, levam à extinção de espécies, degradação ecológica e desequilíbrio do meio ambiente; a caça ilegal e sua conexão com o tráfico de armas; os maus-tratos a animais, que podem indicar a ocorrência de violência doméstica, praticada contra filhos ou cônjuges, além de identificar um possível sociopata que irá cometer crimes contra a vida de outros seres humanos, caso o círculo de violência não seja quebrado.

Portanto, faz-se necessário um aprofundamento para a caracterização de eventuais concursos, com a indicação de patamares de penas mais adequados para a proteção dos animais, do meio ambiente e da sociedade como um todo.

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[1] ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal esquematizado: Parte Geral, 7ª Edição. Coord. Pedro Lenza. São Paulo: Saraiva, 2018.

[2] BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 25/07/23.

[3] BRASIL. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm#:~:text=Destruir%2C%20danificar%2C%20lesar%20ou%20maltratar,a%20seis%20meses%2C%20ou%20multa. Acesso em: 25/07/23.

[4] http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/GECAP/casodalva. Acesso em 26/07/23. 

[5] "A prática reiterada e habitual do crime de roubo, por delinquentes contumazes que fazem de seu comportamento individual ou coletivo (reunidos, ou não, em quadrilha) uma atividade profissional ordinária, descaracteriza a noção de continuidade delitiva. O assaltante, que assim procede, não pode fazer jus ao benefício derivado do reconhecimento da ficção jurídica do crime continuado. A mera reiteração do crime que não se confunde, nem se reduz, por si só, à noção de delito continuado - traduz eloquente atestação do elevado grau de temibilidade social daquele que incide nesse gravíssimo comportamento delituoso" (STF, HC 70.794/SP).

“Penal. Habeas corpus. Roubos em concurso material e formação de quadrilha ou bando. Reconhecimento da continuidade delitiva. Ausência dos requisitos objetivos e subjetivos. Constrangimento ilegal não configurado. Ordem denegada. Pedido de reconsideração de liminar prejudicado. 1. "Esta Corte vem aplicando a teoria objetiva-subjetiva, na qual a aplicação do 'crime continuado' depende tanto dos elementos objetivos – condições de tempo, lugar, modo de execução etc –, como dos subjetivos – unidade de desígnios" (HC 38.016/SP). 2. Não há reconhecer a continuidade delitiva quando ausentes os requisitos objetivos e subjetivos, uma vez que os crimes foram praticados contra vítimas diferentes, de maneira diversa, com lapso temporal impeditivo à configuração da ficção jurídica. 3. Constatada a mera reiteração habitual, em que as condutas criminosas são autônomas e isoladas, deve ser aplicada a regra do concurso material de crimes. 4. Ordem denegada. Pedido de reconsideração de liminar prejudicado” (STJ, HC 140.927/RJ).

[6] "Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas: (...) III - quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou  transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. (...) § 4º A pena é aumentada de metade, se o crime é praticado:

I - contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ainda que somente no local da infração. (...)

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: (...) § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal".

AGDA ROBERTA FARIAS FRARE e MARIA IZABEL VASCO DE TOLEDO

Agda Roberta Farias Frare é cofundadora do Portal Jus Animalis, advogada pós-graduada em Direito Animal pela Universidade de Lisboa - Portugal, especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera (Uniderp), presidente do Conselho Municipal do Meio Ambiente de Amparo/SP, presidente da Comissão de Proteção e Defesa Animal da OAB/SP Subseção de Amparo, membro da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Animais da OAB/SP e vice-presidente da Sociedade Protetora de Animais São Francisco de Assis (Sosafra).

Maria Izabel Vasco de Toledo é cofundadora do Portal Jus Animalis, servidora pública, ativista pelos Direitos dos Animais, especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera (Uniderp), mestre em Relações Sociais e Novos Direitos - Núcleo de Bioética e Direitos dos Animais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Com a palavra, os oprimidos: refletindo sobre os diversos modos de pensar os direitos animais