SINFONIA DA SOBREVIVÊNCIA: O FLAGELO DOS INCÊNDIOS FLORESTAIS CHEGA AO CINEMA
A 48ª Mostra Internacional de São Paulo Int´l Film Festival recentemente exibiu, em meio às novas produções cinematográficas que deverão adentrar no circuito cultural, um documentário brasileiro simplesmente perturbador. Trata-se de Sinfonia da Sobrevivência, longa-metragem dirigido por Michel Coeli, que mostra a devastação advinda dos incêndios florestais na região do pantanal mato-grossense e o impacto do fogo nos animais que habitam o bioma. O diretor é um fotógrafo e documentarista que traz no currículo registros de vidas humanas ou não humanas em situação-limite, como a guerra da Síria, o drama dos refugiados africanos e os elefantes caçados no Quênia para extração de marfim. Desta vez sua lente inquieta mirou o sofrimento da fauna nativa do Pantanal.
Dizem que a arte imita a vida, e vice-versa. Tanto isso é verdade que as histórias contadas no cinema costumam recorrer à ficção para mostrar determinados aspectos da realidade que nem sempre são perceptíveis ao observador comum. Sucede que nos documentários tal lógica é diferente. O cinegrafista procura registrar a vida como ela é ou, então, a morte sem recursos artificiosos, conferindo desde logo uma verossimilhança à narrativa visual capturada. É o que se verifica em Sinfonia da Sobrevivência, onde Michel Coeli, seus colegas de equipe, os voluntários civis e os órgãos oficiais especializados enfrentaram o fogo, a fumaça e o calor das florestas em chamas, na esperança de debelar focos de incêndio e resgatar animais sobreviventes.
O roteiro foi escrito, também, por Renato Vallone e pela produtora executiva Gabriela Rabaldo, durante os 3 anos de preparação do material documental que se transformou em filme. Chama a atenção dos espectadores, ao longo de seus 80 minutos, a perseverança das pessoas empenhadas na missão de salvamento. O documentário mostra um pouco da rotina da força-tarefa constituída por brigadistas e resgatistas voluntários, ao lado de Ibama, ICMBio, Secretaria do Meio Ambiente, Bombeiros, Polícia Militar, Defesa Civil e outras instituições. Distingue-se em meio às estratégias de ação voltadas à vida animal, por exemplo, a liderança do Coronel Barroso junto ao grupo, como se vê na cena em que ele exige fossem os caminhões-pipa carregados de água (e inexplicavelmente ainda parados na Base) usados com urgência para a dessedentação dos animais sobreviventes e desidratados.
A trilha sonora, preenchida pelo som grave das cordas eruditas de Fred Ferreira, traz a devida dramaticidade ao documentário, equiparando-se a uma sinfonia atemporal em que a luta pela sobrevivência dos bichos fala mais alto. Sua mensagem subjacente, em coro à sequência autoral de tantas imagens de destruição e dor provocadas pelo fogo, também se dirige às autoridades constituídas, para que tragédias ambientais como essas transcorridas em 2020, em 2021 e, ainda pior agora, 2024, sejam combatidas com um programa de governo que seja rápido, eficiente e comprometido com a defesa animal, evitando a repetição de tantos e reiterados biocídios.
Em termos estéticos, um detalhe que não passa despercebido da plateia é que o filme - rodado todo ele no plano subjetivo, a partir do olhar projetado pela câmera do diretor - mostra um céu permanentemente rubro ou encoberto pela fumaça das queimadas e onde um esboço de sol por vezes aparece opaco. Chama atenção, ainda, a sensibilidade do diretor para com os animais feridos, mostrando de perto o olhar de cada um deles perante a tragédia, a sua luta pela vida. Distingue-se, em seguida, a extrema dedicação e sensibilidade da equipe veterinária no tratamento de animais resgatados (Ampara Silvestre), de onças a aves, de répteis a antas, na certeza de que toda vida importa. As cenas de recuperação e de soltura sugerem, metaforicamente, que nem tudo está perdido.
Despertar consciências adormecidas. É exatamente isso o que deu a entender, ao final da sessão para convidados, a equipe produtora do documentário. Basta dizer que no Pantanal, a expansão das áreas de pasto para criação de gado e a derrubada de florestas já se viam na época das filmagens, realizadas durante a pandemia. Só naquele período milhões de espécies silvestres foram afeadas pelos incêndios florestais. Em 2020, segundo o INPE, 26% da vegetação nativa do Pantanal foi consumida pelo fogo, impactando com isso a vida de pelo menos 65% de animais vertebrados e 4 bilhões de invertebrados. O Ministério Público de Mato Grosso constatou, na época, que quase 60% dos focos de incêndio no Pantanal provieram da ação humana.
Em tempos de mudanças climáticas e desastres ambientais anunciados, tais como se viu tantas vezes este ano no país - seja nas inundações atípicas do Rio Grande do Sul, seja secas drásticas que afetaram a Amazônia e o Pantanal -, uma coisa é certa: o termômetro do planeta vem dando sinais de que a situação é pior do que as análises mais pessimistas poderiam prever. Afora isso, com o aumento da temperatura global e a redução da oferta de água, em meio às sucessivas ondas de calor, a secura da paisagem florestal torna-se propícia à ação clandestina daqueles que têm interesses escusos na destruição florestal.
O surgimento de seguidos focos de incêndio no Pantanal, continuamente ao longo dos meses, expõe a deficiência do aparelhamento estatal para prevenir e combater crimes ambientais, tanto que agora o governo federal propôs a majoração das penas Sinfonia da Sobrevivência tem exibições previstas para São Paulo nos dias 21/10 às 13h45 no Cinesystem Frei Caneca 5 e no dia 25/10 _as 15h15 no Cinesystem Frei Caneca 1, para depois aguardar possibilidades de entrar em cartaz em outras cidades brasileiras ou, quem sabe, no estrangeiro. Espera-se que isso aconteça, porque a mensagem que ele traz, atualíssima e urgente, não pode ser ignorada. Basta dizer que no momento em que o filme era apresentado ao público no Festival Internacional de Cinema, a fauna do Pantanal ainda se ressentia das trágicas consequências dos incêndios ocorridos em 2024, quando o fogo consumiu mais de 1,3 milhão de hectares de mata nativa, dizimando parte do bioma protegido pela Constituição Federal.
A mensagem do documentário é sobretudo ecológica, por trazer à tona uma realidade provocada pelo bicho-homem, cujas ações e omissões impactam o bioma e todo seu ecossistema. Neste contexto perverso, que envolve o aumento nos índices de desflorestamento e o ciclo da exploração agropecuária, as maiores vítimas são os animais que ali habitam. Palavras do diretor Michel Coeli no final da sessão aos convidados, onde também esteve presente o Jus Animalis: "No processo de construção do roteiro a gente se emocionou bastante, o cenário era muito pessimista. Estávamos ali numa situação bem complicada, porque o poder do fogo é muito grande. E cada vez mais vemos esse desastre se repetindo, os animais sendo afetados. Mas o filme dá uma esperança na humanidade, ao mostrar pessoas tentando amenizar o sofrimento dos inocentes. Por isso sua mensagem é universal".
Edição: Jus Animalis
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