Argentina: “Pessoa não humana”, Justiça negou que mulher incluísse seu bassê em sua licença para cuidar de familiares
O Tribunal Federal de Apelações de Salta, na Argentina, rejeitou o recurso apresentado por uma engenheira agrônoma do Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (INTA) para ampliar o regime de licenciamento previsto para o cuidado de familiares e dependentes e assim incorporar seu cão bassê nas causas de justificativa para faltar ao trabalho. O seu pedido invocou o precedente do orangotango “Sandra” e, por sua vez, os direitos “à proteção da família interespécies”, “ao bem-estar da pessoa não humana” e à “não discriminação” baseada em espécies.
Ao rejeitar esse argumento, a sentença manteve a decisão de primeira instância de que a “defesa processual” escolhida pelo autor não era a maneira apropriada de lidar com uma questão que “trata de um assunto discutível que exige uma gama maior de debates ou provas”.
O processo em questão tratava do caso da engenheira Silvia Colletti, radicada em Salta, que em dezembro de 2022 ajuizou ação de proteção contra seu empregador, o INTA, após este órgão estadual de investigação ter rejeitado administrativamente seu pedido de inclusão “de forma agregada” ao seu cão Dharma, então com nove anos, no regime de licenciamento legalmente previsto nos acordos gerais e sectoriais ligados ao cuidado de familiares e dependentes.
Nessa ocasião, a denunciante explicou que há quase uma década formou “uma família interespécies” com o seu dachshund, que nos últimos anos “desenvolveu doença renal crônica e pancreatite crônica, gerando uma predisposição para sofrer trombose nos vasos mesentéricos”. “Atenção ampla e sua presença para atender seu animal de estimação, já que não possuem outra rede de apoio familiar”, informou a decisão da sala I da Câmara Federal de Salta.
Conforme ali descrito, a mulher explicou que em abril de 2022 teve de faltar dois dias ao trabalho por “motivos particulares” para poder ajudar Dharma com os seus problemas de saúde, “sendo exposta a ter apenas mais dois dias de trabalho para aquele ano.” Em rigor, os funcionários públicos podem faltar ao cargo seis vezes por ano por “motivos particulares”, não podendo invocar esta prerrogativa mais de duas vezes por mês.
Diante dessa situação, a funcionária iniciou uma reclamação formal junto ao órgão para que seu animal de estimação fosse inserido no quadro de licença médica familiar, através da qual ela poderia se ausentar justificadamente por esses motivos. O INTA rejeitou esse pedido após avaliar que “as licenças que podem ser concedidas são apenas as previstas na regulamentação em vigor -decretos 127/06 e 214/06-”.
Diante dessa recusa, Colletti recorreu à justiça federal de Salta por considerar que a resolução do Instituto ia contra as convenções internacionais em relação à tutela da “família interespécies estabelecida” entre ela e seu cão doméstico. Isto se baseou no parecer consultivo n.º 23 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), onde, segundo a engenheira, “foram estabelecidas bases sólidas para desenvolver uma teoria normativa dos direitos dos animais ao considerar a necessidade de proteger a natureza e o meio ambiente não só pela sua ligação com uma utilidade para o ser humano ou pelos efeitos que a sua degradação pode causar nos direitos de outras pessoas, como a saúde, a vida ou a integridade pessoal, mas pela sua importância para os demais organismos vivos com os quais que o planeta é compartilhado também merecem proteção em si, estabelecendo obrigações de prevenção, cooperação, procedimentais e cautelares para os Estados Partes.”
Nessa apresentação também explicou que a Argentina iniciou “uma nova era” como resultado do precedente “Orangutana Sandra”, onde a Câmara II da Câmara Federal de Cassação Penal reconheceu o animal como “sujeito de direitos” como um “não- pessoa ‘humana’ com a dignidade de ‘um ser senciente’, pelo que a sua ‘proteção’ foi possível na área de competência correspondente”.
No dia 15 de dezembro, o juiz federal rejeitou o recurso de tutela após avaliar que o órgão estadual “agiu no âmbito de sua jurisdição” e “de acordo com o ordenamento jurídico vigente” ao negar a incorporação do cão Dharma ao sistema de licenças para cuidar de familiares e dependentes. Além disso, a magistrada ressaltou que “a autora poderia ter instaurado processo administrativo contencioso para ter acesso a processo de amplo conhecimento – judicial – onde pudesse comprovar todas as alegações denunciadas em relação à sua situação familiar e parceira afetiva com o cão Dharma, bem como seu estado de saúde, tratamento médico e outras condições que considere relevantes.
Após recurso, o caso chegou à Câmara I do Tribunal Federal de Apelações de Salta, integrada pelos juízes Ernesto Sola Espeche, Santiago French e Luis Renato Rabino Baldi Cabanillas, cuja decisão, publicada recentemente pelo site Microjuris, foi proferida por unanimidade.
Na hora de resolver o caso, os parlamentares qualificaram a ação de amparo como uma “via processual excepcional” que deveria ser admitida em caso de “manifesta arbitrariedade ou ilegalidade” que “atual ou iminentemente” prejudique direitos e garantias constitucionais”, requisitos cuja demonstração “É essencial para a origem daquilo e daquilo não consta do sub lite – o caso concreto”. Sob estes parâmetros, expressaram: “resulta das declarações da autora na sua petição inicial (...), que ela limitou o seu pedido processual a um caso hipotético e eventual; isto é, que o seu animal de estimação seja incluído no regime de licenciamento (...) -quando o estado de saúde do cão Dharma o justificar-, sem que se configure qualquer agravo de natureza constitucional, muito menos de natureza daquele que invoca o autor, não sendo aparente a urgência e urgência da situação que possibilita os meios excepcionais de proteção.”
“Com efeito”, detalharam os juízes, “com os autos fornecidos pelo amparo apenas ficou demonstrado que nos meses de abril e maio de 2022, a cadela Dharma sofreu uma descompensação de saúde, momento em que pôde ser atendida. e cuidada pelo seu proprietário quando solicita dois dias de licença por motivos particulares (...), pelo que não parece clara uma lesão certa ou inevitável causada de forma arbitrária, ou manifestamente ilegal pelo seu empregador, que exija a ação expedita e rápida pretendida.”
E acrescentaram: “Não se pode ignorar que o regime de licenciamento do pessoal da Administração Pública e, no caso concreto, dos funcionários da INTA (…), é o resultado de acordos alcançados entre o Estado Nacional e os setores sindicais, que, em nome dos trabalhadores, fizeram valer os seus direitos, buscando melhorias e ajustes no sistema, portanto neste momento não há razão para se afastar dos mecanismos de consenso estabelecidos para obter uma modificação ao regime atual”.
Em seguida, descartaram o fundamento invocado pela engenheira a respeito do parecer consultivo da CIDH, uma vez que “se trata de um tema completamente alheio à reclamação veiculada nos autos. Com efeito, o referido texto originou-se da abordagem da República da Colômbia sobre as 'obrigações do Estado em relação ao meio ambiente no âmbito da proteção e garantia dos direitos à vida e à integridade pessoal' regulados pelos arts. 4.1 e 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o que, evidentemente, não tem qualquer vínculo com a incorporação do animal de estimação da autora ao regime de licença para familiares doentes ou dependentes previsto na regulamentação da instituição em que trabalha”.
E o mesmo se pode dizer do que consta da também invocada decisão da Câmara II da Câmara Federal de Cassação Penal - a respeito do referido orangotango - de 18/02/14, na medida em que atribui aos animais o caráter de 'não -sujeitos' titulares de direitos humanos”, afirmou a Câmara Federal de Salta, e sobre o posicionamento dessa decisão, cuja proposta associou ao juiz Eugenio Zaffaroni, comentou: “encontra opiniões opostas tanto no nível doutrinário quanto de lege ferenda - vinculado a futuras reformas legislativas -”.
Neste quadro, concluíram: “Ressalte-se que a referida resolução (...) tem origem numa plataforma factual também notoriamente distante daquela aqui proposta. O fato é que no referido expediente foi deduzida uma ação de habeas corpus em favor do referido orangotango com o objetivo de transferi-lo do zoológico da Cidade de Buenos Aires - onde permaneceu por quase 20 anos - para um habitat compatível e empática com a sua condição de tal, o que finalmente aconteceu, encontrando-se atualmente num centro adequado para esse fim no estado norte-americano da Flórida (...)”.
Dessa forma, os juízes decidiram rejeitar a impugnação levantada pela defesa de Silvia Colletti e, por sua vez, descartaram o pedido do INTA para que as custas do processo fossem pagas pela parte vencida. Nessa linha, analisaram que “o próprio Estado considerou a questão” como “nova e complexa”, razão pela qual justificava estabelecer “custos por sua ordem”.
FONTE: Infobae