Canções ecológicas e animalistas na MPB: de Erasmo Carlos a Chico César – Parte 1

O discurso ecológico propriamente dito remonta ao século XX, época de grandes conflitos bélicos, quando o homem conheceu de perto seu poder destrutivo e passou a expressar, muitas vezes pela arte, preocupações com o futuro do planeta e de todos os seres vivos. A ideia de proteger o meio ambiente coincide com o período da Guerra Fria, em meio a era atômica e a política desenvolvimentista de muitos países que não hesitavam em subjugar a natureza em prol do chamado progresso. Sob os ventos da contracultura inspirados no movimento hippie, na música de protesto e nas manifestações públicas dos ecologistas pioneiros que ergueram voz também em favor do meio ambiente, grupos organizados passaram a reivindicar uma postura pacifista e a preservação da mãe-Terra. Este artigo se propõe a contextualizar a vertente ecológica/animalista que aparece em certas canções da MPB e, em função da mensagem cantada, refletir sobre seu papel transformador.

Na era do rádio o tema ambiental ainda não estava em voga, embora no Brasil o universo rural (sertanejo raiz e música nordestina, sobretudo) tenha produzido composições que abordavam o sofrimento de animais que viviam em servidão. Somente nos anos 70, todavia, é que se ouviu o apelo por uma nova consciência, quando alguns autores projetaram, na música, uma vertente diferenciada que se voltava também à defesa do meio ambiente. O mais importante deles foi Erasmo Carlos, que naquela década expressou em seus discos uma séria preocupação ecológica. Cantores regionalistas dos anos 80, tais como Dércio Marques, Paulinho Pedra Azul, Marlui Miranda e Deo Lopes, já trazem na obra um olhar sensível para com a natureza viva. 

A temática relacionada ao ambiente ou aos animais pode ser encontrada na MPB, embora de modo pontual, como se observa da discografia de Chico Buarque, Caetano Veloso, Guilherme Arantes, Toquinho, Rita Lee e Chico Cesar, para aqui citar apenas alguns nomes. É claro que existem no Brasil outros importantes artistas, conhecidos do público ou nem tanto, que também trilharam nesse mesmo caminho compassivo, razão pela qual o texto ora apresentado não esgota o assunto, muito contrário, pode ser um ponto de partida para pesquisas mais aprofundadas que possibilitem diferentes resgates de cantores ou compositores comprometidos com a causa ambiental e dos animais.        

Retratos sertanejos e do Brasil caboclo

Pode-se dizer que a música muito contribuiu para a construção da identidade nacional, sobretudo no período posterior à abolição da escravatura, quando novos sons, ritmos e cantos incorporaram-se ao cotidiano popular. No início da República, em redutos da população afro-brasileira, foi criado o samba, que encontrou seu espaço entre marchinhas, maxixes, valsas, polcas, lundus, choros e outros gêneros recorrentes na época, de Chiquinha Gonzaga às personalidades marcantes da Era do Rádio. Neste contexto antigo parece não existir registro de nenhuma canção relevante com temática ambiental ou mesmo alusiva aos animais. Sucede que, em contrapartida àquilo que se ouvia no cenário citadino, na música sertaneja do Norte/Nordeste e na música caipira paulista surgem letras falando do padecimento de espécies destinadas ao lazer humano ou às lidas rurais.

Um dos maiores sucessos do artista que se consagrou como o “Rei do Baião”, Luiz Gonzaga, é Assum Preto, que trata da crueldade humana a recair sobre um pássaro que, “cego dos óio / num vendo a luz, ai, canta de dor”. Escrita por Humberto Teixeira em 1950, a canção menciona uma prática nordestina até certo ponto comum naquele tempo, a de furar os olhos da graúna para que ela, domesticada e mantida solta, pudesse supostamente cantar melhor. O tema do sofrimento animal também esteve presente no cotidiano caboclo do interior de São Paulo, meados do século XX, podendo ser exemplificado em dois sucessos da dupla Tonico e Tinoco. O primeiro deles é Besta Ruana (1949), onde a letra de Ado Benatti faz uma elegia ao animal de carga que, depois de tanta sujeição, sofre grave fratura e é sacrificado a tiro:

 Tinha uma besta ruana, pus o nome de princesa 

 Outra igual não existia cem léguas na redondeza 

 Eu tratava da ruana com toda a delicadeza 

 Se estourava uma boiada eu juntava na certeza

 Um dia chegou a desgraça no atalho da represa 

 Cai numa pirambeira a ruana ficou presa 

 A besta quis levantar, mas lhe faltou a firmeza 

 E quebrou as duas pernas e acabou minha princesa 

 Passei a mão na garrucha, apontei com bem firmeza

 A ruana relinchou como em jeito de defesa

 Vi as lágrimas correr, cai do olho da princesa

 Matei ela com dois tiros, depois chorei de tristeza 

 Abri uma sepultura, enterrei minha riqueza 

 Fiz uma cruz de pau dalho, deixei quatro vela acesa 

 Na cruz eu fiz um letreiro, escrevi com bem clareza 

 Matei pra não ver sofrer a minha saudosa princesa.

Já na melancólica composição de Anacleto Rosas Jr, Boi de Carro (1951), fica evidenciada a empatia do eu lírico cantador para com o animal explorado nas lidas campestres, o que se expressa pelo sentimento de tristeza do autor em face do destino dado ao boi de carro, qual seja, o matadouro. Eis alguns excertos da letra: 

Boi de carro sem valia foi quebrado 

De puxar carro pesado, costume que os patrão faz 

Boi de carro, hoje véio rejeitado 

Seu cangote calejado da canga que te prendeu    

Boi de carro o seu dia tá marcado

Pro corte foi negociado, pra matá no fim do mês 

Adeus maiádo, meu sentimento é profundo, 

Vou andando pelo mundo esperando minha vez.

Uma nova consciência e juventude

A Segunda Guerra Mundial e seus fantasmas repercutiram no espírito humano, de modo a despertar muita gente para o risco da destruição do planeta. Esse contexto temporal foi marcado por medo e incertezas, com ênfase aos malefícios da poluição ambiental e às espécies silvestres ameaçadas de extinção. Os animais domésticos também não foram ignorados pelos ecologistas, tanto que se começou a redigir na Europa uma Declaração Universal de Direitos dos Animais. No início da chamada “década do sonho”, a bióloga norte-americana Rachel Carson publica sua emblemática obra Primavera Silenciosa (1962), revelando aos leitores a gravidade dos impactos ambientais decorrentes do uso de pesticidas liberados na natureza e sua consequente transmissão pela cadeia alimentar, tornando-se ela uma das precursoras do discurso pela conscientização ecológica. 

Não tardou para que a inglesa Ruth Harrison, profissional da área de medicina veterinária e, também, do jornalismo, denunciasse as perversidades inerentes ao sistema de produção animal para consumo, fazendo-o nas páginas de seu livro Animais Máquinas (1964). Também nesse período efervescente da história, quando as nações ainda temiam um conflito atômico, a musicalidade de Bob Dylan e Joan Baez passa a se expressar por meio de inesquecíveis canções de protesto. Era a contracultura que se incorporava ao espírito da nova geração, a conduzir os anos 60 ao som dos Beatles e mostrar, pelos caminhos transformadores da arte, que vida e sonho precisavam seguir lado a lado. 

É certo que, nesse mesmo período, o Brasil urbano vivia o fenômeno da Jovem Guarda ou Iê-Iê-Iê, um gênero musical descontraído, dançante e influenciado pelo rock and roll e pelo soul norte-americano, levando por intermédio de seu programa televisivo dominical dezenas de novos artistas à popularidade. Foi nessa época, aliás, que aparecem ao grande público as figuras carismáticas de Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Em termos de crítica musical, ao contrário das análises feitas em relação aos movimentos da Bossa Nova e do Tropicalismo, significativa parcela dos especialistas atribuía à Jovem Guarda o estigma da alienação, sob o argumento de que ela ignorava os problemas existentes no Brasil e no mundo. 

Na década seguinte, com os regimes ditatoriais instalados na América Latina e a consequente repressão política, o discurso engajado expandiu-se para também abarcar a luta ecológica. Afinal, além dos conflitos bélicos, a insensatez humana também se mostrava pródiga em destruir o meio natural e eliminar a vida selvagem. Fazia-se urgente estabelecer um pacto mundial em favor do meio ambiente, antes que fosse tarde demais. E o mais fiel retrato dos tempos sombrios que se debruçavam sobre a vida e seu entorno chegou a MPB sob a forma de canção. Trata-se do poema A Rosa de Hiroshima, escrito por Vinicius de Moraes em 1954, que foi magistralmente musicado por Gerson Conrad e estourou nas paradas de sucesso quase duas décadas depois com o conjunto Secos & Molhados:

Pensem nas crianças mudas telepáticas

 Pensem nas meninas cegas inexatas 

 Pensem nas mulheres rotas alteradas 

 Pensem nas feridas como rosas cálidas  

 Mas oh não se esqueçam da rosa da rosa 

 Da rosa de Hiroshima a rosa hereditária 

 A rosa radioativa estúpida inválida

 A rosa com cirrose a anti-rosa atômica 

 Sem cor sem perfume sem rosa sem nada. 

Com os festivais da canção e os artistas cujas carreiras se consagraram nos anos 70, novos ventos sopram em direção à MPB. Era preciso uma nova consciência e juventude, tal qual proclamava Belchior e outros tantos compositores conscientes de seu papel. Muitos deles produziram uma obra atemporal, tendo sido revelados talentos como Chico Buarque, Elis Regina, Milton Nascimento, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, Nara Leão, Edu Lobo, Marcos Valle e outros tantos nomes de reconhecida grandeza. Estava aberto o caminho para o discurso ecológico adentrar no mundo da música. E por mais irônico que possa parecer, ele veio com uma canção de Roberto e Erasmo Carlos, de 1976, intitulada O Progresso: 

Eu queria poder afagar uma fera terrível

Eu queria poder transformar tanta coisa impossível

Eu queria dizer tanta coisa que pudesse fazer eu ficar bem comigo

Eu queria poder abraçar meu maior inimigo.

Eu queria não ver tantas nuvens escuras nos ares

Navegar sem achar tantas manchas de óleo nos mares

E as baleias desaparecendo por falta de escrúpulos comerciais

Eu queria ser civilizado como os animais.

Eu queria não ver todo o verde da Terra morrendo

E das águas dos rios os peixes desaparecendo

Eu queria gritar que esse tal ouro negro não passa de um negro veneno

E sabemos que por tudo isso vivemos bem menos

Eu não posso aceitar certas coisas que eu não entendo

O comércio das armas de guerra, da morte vivendo 

Eu queria falar de alegria ao invés de tristeza mas não sou capaz

Eu queria ser civilizado como os animais.

Não sou contra o progresso, mas apelo pro bom senso

Um erro não conserta o outro, isso é o que eu penso.

LAERTE LEVAI

Jornalista ambiental (DRT nº 96682/SP) e associado ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (matrícula nº 23.466). Atuou por mais de três décadas no Ministério Público do Estado de São Paulo, como Promotor de Justiça em São José dos Campos e, depois, no Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (GAEMA Paraíba do Sul), até se aposentar. É pesquisador do Núcleo Ética e Direito Animal, do Diversitas (FFLCH/USP) e do Núcleo Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão em Direitos dos Animais, Meio Ambiente e Pós-humanismo (UFBA).

Anterior
Anterior

Canções ecológicas e animalistas na MPB: de Erasmo Carlos a Chico César – Parte 2

Próximo
Próximo

Como construir uma linguagem antiespecista?