O sangue inocente derramado na guerra

“E ali não sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos os que vivem conosco na terra. Sofrem sem palavras, o que é ainda mais terrível”

(Svetlana Aleksiévitch) [1]


Com o anúncio de mais uma guerra, vimos nas redes sociais de ativistas e de grupos em defesa dos animais o compartilhamento de imagens dolorosas. Em uma delas, um menino sentado em frente ao gatinho amarelo morto observa com ar de tristeza. Em outra, um burrinho banhado de sangue está deitado em meio aos escombros, o seu olhar é de dor. São muitas imagens que chegam até nós, outras tantas nunca ficaremos sabendo.

É unânime o fato de que nas guerras as crianças, as mulheres, os idosos e pessoas com deficiência são as maiores vítimas. Também, nota-se um grande número de civis mortos. Até então, pouco se falava sobre os animais não humanos durante os conflitos bélicos. Com o avanço dos direitos dos animais somado ao grande volume de grupos e de pessoas em sua defesa nas redes sociais, vimos surgir reivindicações diversas.

A frase inicial foi retirada do livro A guerra não tem rosto de mulher. A obra aborda os horrores da Segunda Guerra Mundial sob o ponto de vista das mulheres que estiveram nos combates. Os depoimentos são terríveis, como os que seguem: “Tinham comido todos os cães e gatos da cidade. Os pardais e as pegas desapareceram. Até os ratos e camundongos pegaram para comer...” [2]. Diz ainda, outra depoente: “Quando fugiam do campo de trabalho, eles levavam um jovem para isso... A carne humana é comestível... Era assim que se salvavam...”. Não há vencedores ou vencidos, há destruição, devastação e mesmo depois do término, vem um longo período de fome e miséria.

Quem ganha com a guerra? Certamente não são as pessoas que vão ao combate ou as que ficam à mercê em suas casas. Os poderosos e a indústria bélica são favorecidos e ficam imunes aos resultados desastrosos. O certo é que quem promove a guerra não vai para o combate. 

Após a Primeira Guerra Mundial o mundo afundou em um período de fome e de falta de recursos. Acredita-se que, aproximadamente, 8 milhões de cavalos, burros e mulas tenham morrido nos conflitos. Somente a França havia levado mais de um milhão e meio de equinos para os campos de batalha. Eles serviam para carregar armas, mantimentos, pessoas, etc. O governo francês instituiu uma lei que obrigava os trabalhadores rurais a cederem os seus animais para uso do exército. Estima-se que mais de 80% dos cavalos tenham sido abatidos em combate. Os que voltaram estavam magros, doentes e assustados. Cães também foram vítimas da brutalidade humana. Foram levados para ajudar nos resgates, nos ataques e até mesmo para farejar os opositores. 

O historiador norte-americano Peter Sahlins publicou, em 2017, a obra 1668, The year of the animal in France, na qual ele pensa o papel dos animais na construção do absolutismo no reinado de Luís XIV. O ano de 1668 foi o ano da criação de um zoológico no Palácio de Versalhes, diz o autor, “no zoológico, os animais eram graciosos e civilizados, a fim de representar o poder civilizador do rei, levando à conclusão de que na natureza animal do humano justificava o governo absolutista” [4]. A era napoleônica foi marcada pela captura, objetificação e uso de várias espécies de animais para o entretenimento e para a instrumentalização científica e industrial. A Europa, antes das duas grandes guerras, já estava marcada com o selo da exploração animal para entretenimento e para usos pelo poderio político.

A diretora neozelandesa Niki Caro produziu o filme intitulado O zoológico de Varsóvia (2017) que aborda o tema da Segunda Guerra Mundial de forma peculiar. As imagens mostram o pavor daquelas pobres criaturas enjauladas em meio ao bombardeio aéreo. Em desespero, alguns animais tentavam fugir em vão. Os militares armados até os dentes executam os sobreviventes. Uma catástrofe que deve ser lembrada, a guerra afeta todas as outras espécies. Embora as outras espécies não sejam o foco desta história, vale lembrar que as consequências destes cativeiros são terríveis. Ao término da guerra o zoológico foi reaberto. Uma brutalidade inaceitável!

Ao final da Segunda Guerra Mundial, não existia um número exato de mortos, mas foram aproximadamente 80 milhões de pessoas, sendo que mais de 51 milhões eram civis, dentre estes figuraram pessoas idosas, deficientes, crianças, mulheres, jovens, e um número incontável, pois, até o momento, invisibilizado pela historiografia, de pessoas não humanas. 

Sobre a Primeira Guerra Mundial, o escritor francês Jean Giono (1895 – 1970) criou uma obra ficcional de primeira grandeza, L’Homme qui plantait des arbres, que narra o cotidiano de Elzéar Bouffier, um homem solitário, que fala pouco, anda sempre com um cão e planta árvores em uma região devastada pela indústria movida a carvão. O livro ganhou uma versão cinematográfica que levou o mesmo nome, foi um curta-metragem lançado em 11 de junho de 1988, no Japão, pelo diretor canadense Frédéric Back [5]. Nele o autor aborda a devastação das florestas na Europa para alimentar a indústria bélica fornecendo carvão. A destruição de uma floresta representa a morte de milhares de espécies de animais e vegetais que nela vivem. 

Maria Lacerda de Moura, escritora pacifista, que viveu e escreveu no período entre as duas grandes guerras, fez a conexão entre a indústria armamentista e o tráfico de drogas ilícitas. Se por um lado havia os poderosos acumulando fortunas, por outro lado, as pessoas compactuavam com seu silêncio e com o consumismo. O capitalismo aproveita tudo, tudo vira mercadoria. Daí as conexões que ela faz entre a indústria bélica, química e a, então nascente, indústria do entretenimento. Diz a autora: “O homem continuará a descer sempre, bem para baixo de todos os símios, na sua maldade de criatura civilizada, para estimular todas as virulências, desde as guerras até o prazer satânico de martirizar os animais em nome do humanitarismo cínico. [...] A humanidade pode progredir sem a fisiologia, porém, não poderá progredir sem a piedade” [6].

As guerras tiveram entre as suas motivações as disputas territoriais, rixas em nome do poder e do capital, foram movidas, em parte, por governos sanguinários, muitas vezes, financiadas por patrimônio empresarial, de banqueiros sedentos pela acumulação financeira, por narcogovernantes, por ruralistas sanguinários, mas, sobretudo, sempre tiveram forte resistência de seus opositores. Sobre elas muito se escreveu. Histórias escritas com sangue, que giram, em sua maioria, na órbita do poder e do dinheiro. As narrativas sobre as constantes guerras ao redor do mundo, certamente, não poderão mais omitir a devastação sobre as vidas não humanas.

Com o início de mais uma guerra, vimos o governo brasileiro autorizando a repatriação de pessoas com seus cães e gatos. É o mínimo que se pode fazer! As forças de defensores e defensoras dos direitos dos animais já haviam atuado na recente guerra entre Rússia e Ucrânia com vistas a ajudar na retirada de animais de abrigos e na busca por acomodação em países próximos. E todas as outras espécies? Pássaros, animais silvestres, vítimas indefesas da barbárie humana sofrem sem palavras!  


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Referências bibliográficas

[1] ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. Tradução: Cecília Rosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 12.

[2] ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. Tradução: Cecília Rosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 138.

[3] ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. Tradução: Cecília Rosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 35.

[4] SAHLINS, Peter. 1668: the year of the animal in France. New York: Zone Books, 2017, p. 343.

[5] O filme pode ser visto no YouTube em: https://www.youtube.com/watch?v=lQ0EFv0_kss&t=269s

[6] MOURA, Maria Lacerda [1931]. Civilização, tronco de escravos. Org. Patrícia Lessa e Cláudia Maia. São Paulo: Editora Entremares, 2020, p. 32-33. 

PATRICIA LESSA

Escritora, educadora e atuante na promoção cultural. Alguns de seus livros autorais que abordam a questão dos animais não humanos são:  Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura, publicado pela editora Entremares (2020), Literatura infantil: Nise da Silveira (2023) e Maria Lacerda de Moura (2023), ambos fazem parte da coleção Lute como uma garota e foram publicados pela Appris; O Resgate do Touro Vermelho, pela editora Luas (2021); e os livros que organizou: Relações multiespécies em rede: feminismos, animalismos e veganismo pela editora Eduem (2017) e Relações interseccionais em rede: feminismos, animalismos e veganismos, pela editora Devires (2019). Demais dados podem ser encontrados em seu site: https://patricialessa.com.br/. Créditos da foto: Isa Angioletto.

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