Entrevista com Eugenio Raúl Zaffaroni

Jurista e magistrado argentino, Eugenio Raúl Zaffaroni é referência na América Latina e uma das maiores autoridades mundiais em Direito Penal na atualidade. Foi ministro da Suprema Corte Argentina de 2003 a 2014 e, desde 2015, é juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Professor emérito e diretor do Departamento de Direito Penal e criminologia na Universidade de Buenos Aires, é também doutor honoris causa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pela Universidade Federal do Ceará, pela Universidade Católica de Brasília e pelo Centro Universitário FIEO. É vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal. Autor do  livro “La Pachamama y el humano”, que consiste em um dos principais marcos mundiais com relação aos direitos dos animais e da natureza, Zaffaroni concedeu uma entrevista exclusiva ao Jus Animalis.

Jus Animalis - O livro “La Pachamama y el humano”, traduzido para o português e publicado no Brasil, consiste em um dos principais marcos mundiais com relação aos direitos dos animais e da natureza, na defesa de que estes possuem valor intrínseco. Desta forma, o senhor critica a capacidade destrutiva do ser humano, o especismo, o antropocentrismo e o sistema produtivo atual. Como o senhor enxerga o papel do movimento social e político e da “deep ecology” no âmbito do capitalismo predominante em grande parte do planeta? 

Zaffaroni: Creio que se trata de um apelo ao regresso à naturalização, o que soa discordante com os meios de comunicação social e com as necessidades urgentes das nossas classes mais desfavorecidas. Como bem disse o Papa Francisco, não há duas crises, uma ambiental e outra social, mas uma única crise socioambiental, mas os mais afetados não têm consciência disso, continuam a sentir a questão ambiental como algo independente das suas urgências crescentes. Não se trata de um movimento de elites, mas deve ser "popular", chegando aos que sofrem, fazendo-os compreender que esta economia financeirizada do nosso tempo é a causa desta crise socioambiental total.

Jus Animalis: A América Latina foi a primeira a inaugurar um constitucionalismo ecológico, com a inserção nas constituições do Equador e da Bolívia dos direitos da natureza, bem como dos direitos sociais na constituição mexicana. Quais são os maiores entraves à concessão de personalidade jurídica aos animais e à natureza?

Zaffaroni: Exatamente, a nossa América inaugurou há meio milênio a ideia dos Direitos Humanos com Fray Bartolomé de las Casas; há pouco mais de cem anos o constitucionalismo social com a Constituição de Querétaro de 1917 e há poucos anos o constitucionalismo ecológico. Somos inovadores em matéria jurídica, embora o Norte não o reconheça e por vezes recebamos mensagens com "novidades" que já conhecíamos. As maiores dificuldades no reconhecimento da personalidade jurídica, ou seja, dos animais e da natureza como titulares de direitos, são de duas ordens. Em primeiro lugar, a resistência dos interesses financeiros e da sua ideologia autodenominada "neoliberal", ou seja, o poder econômico que hoje domina abertamente o poder político. Em segundo lugar, o próprio discurso jurídico, uma vez que estamos habituados ou formados com um saber jurídico assente no pressuposto de que todos os direitos são "humanos" e que, portanto, para além dos seres humanos, ninguém tem direitos. Isto remonta a Descartes e à sua racionalidade: a razão é exclusivamente humana e os direitos só pertencem aos dotados de "razão", o resto é "natureza irracional". Não esqueçamos que isto serviu para que mais tarde, não Descartes - coitado - mas Spencer e outros, considerassem que havia menos seres humanos e, portanto, os assimilassem à natureza e se permitissem matá-los sem piedade nos piores genocídios do neocolonialismo. Há quantos anos aboliram a escravatura? Em 1888, nasceram os meus avós. É pouco tempo para convencer os juristas, que demoraram tanto tempo a aceitar que todos os humanos são pessoas, que os animais e a natureza também o são.

Jus Animalis: O senhor defende a harmonia do ser humano com a natureza, considerando a Terra (“Gaia”) como um super-organismo vivo que se auto-regula para sempre produzir e reproduzir vida, na qual todos os seres são incluídos. Quais os fatores que, em sua opinião, poderiam reverter o status de propriedade dos animais, passando a considerá-los, de fato, como sujeitos de direitos?

Zaffaroni: Infelizmente, a história nos ensina que a humanidade não tem uma cultura de progresso constante, mas de graves retrocessos criminosos e, quando deu alguns passos em frente, como a consagração formal, pelo menos, dos Direitos Humanos, não o fez nem por puro exercício da razão, porque se sentaram a meditar, mas pelo medo das catástrofes anteriores que lhes incutiram. A principal força motriz destes avanços no reconhecimento dos direitos, para dizer a verdade e com toda a honestidade, provém sempre do medo que as catástrofes incutem. Receio que o mesmo aconteça aqui, mas, em todo o caso, é bom que façamos um esforço para tentar sensibilizar a humanidade para o risco antes que ele se concretize.

Jus Animalis: O constitucionalismo andino tem impulsionado significativas transformações nos países da América Latina. Embora o Brasil tenha sido precursor com os avanços trazidos no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, proibindo a crueldade contra os animais, reconhecendo implicitamente a condição de sujeitos de direitos aos animais não humanos, não houve a repercussão necessária na legislação ordinária. Boa parte das pessoas reivindica o recrudescimento de penas aos crimes de maus-tratos, entendendo que esse é o caminho para uma tutela jurídica efetiva. Como o senhor entende o anseio da concretização da proteção dada pela Constituição por meio do direito penal?

Zaffaroni: Sou, antes de tudo, um advogado criminalista e, como tal, passei muitos anos trabalhando como doutrinador e professor na área e, durante décadas, como magistrado. Por conseguinte, tenho muito pouca confiança no direito penal, ou melhor, no exercício do poder punitivo, que é sempre seletivo e recai sobre os mais vulneráveis, para não dizer os mais infelizes. Mas, em todo o caso, não deixa de ser útil, punir os comportamentos aberrantes é sempre bom, mas tendo o cuidado de não punir apenas aqueles que sobrevivem caçando uma ou outra lontra e deixando impunes aqueles que organizam corridas de cães e depois os matam quando já não lhes são úteis ou se divertem a disparar sobre pombos previamente engaiolados.

Jus Animalis: A doutrina penalista brasileira não reconhece o animal como sujeito passivo do crime de maus-tratos. Entendemos que esse não reconhecimento decorre de a doutrina civilista ainda classificá-lo como coisa. Nos parece não haver óbice normativo civil à atribuição de direitos além dos humanos, tendo em vista que o próprio Código Civil atribui direitos a entes despersonalizados, com capacidade processual e legitimidade ativa e passiva para acionar e serem acionados em juízo, mediante representação. Partindo dessa premissa, o senhor acredita que exista razão para impedir o reconhecimento dos animais como sujeitos passivos do crime de maus-tratos?

 Zaffaroni: Nenhum. Os códigos civis modernos reconhecem os animais como não humanos, mas não como coisas. Os incapacitados mentais não deixam de ser pessoas, mesmo que não possam exercer pessoalmente os seus direitos. Todas as teorias que defendem que na proteção penal dos animais o sujeito ativo e único titular do direito é o ser humano são contraditórias e insustentáveis. A vítima dos maus tratos é o animal e, portanto, o direito legal pertence ao animal e não a qualquer ser humano "piedoso" ou "sensível". As leis penais de proteção dos animais contra os maus-tratos colocavam um sério problema ao direito penal tradicional, do qual este se tentava livrar através de todas estas teses contraditórias: se o bem jurídico é o suposto sentimento de "piedade" do ser humano, seriam atípicos os maus-tratos aberrantes a um animal ou a muitos animais, se fossem feitos em segredo ou em privado? Nenhum colega me soube responder a esta pergunta. Além disso, a lei argentina pune quem "vitimiza" um animal maltratando-o. Na minha juventude, ouvi um famoso advogado criminalista da época, de grande renome internacional, pretender sair da situação afirmando que a lei estava "errada". É óbvio que os doutrinadores que se presumem cientistas interpretam as leis e não eliminam suas palavras.

Jus Animalis: Como a Lei 14.346/54 é aplicada na Argentina? Os autores de crime de maus-tratos, de fato são punidos com a pena privativa de liberdade?

Zaffaroni: Não chega ao ponto de uma pena privativa de liberdade. As condenações são geralmente poucas e quase sempre condicionais. A lei é insuficiente, mas pelo menos de vez em quando é aplicada uma pena, mesmo que seja com "surcis".

Jus Animalis:  O que o senhor pensa sobre a utilização de instrumentos jurídicos para garantir os direitos dos animais, como o habeas corpus?

Zaffaroni: Houve alguns casos de sucesso na Argentina. São casos jurisprudenciais que estão a abrir um caminho e também a abrir cabeças, chamando a atenção de quem nunca pensou nisso. 

Jus Animalis: O livro “La Pachamama y el humano” traz uma severa crítica com relação à dominação do ser humano com relação ao meio ambiente e aos animais. Por outro lado, revela uma ecologia holística e profundamente integradora de todos os elementos da natureza. O senhor consegue manter o otimismo e a fé no ser humano, com tantas notícias de destruição da natureza, guerras, maus-tratos a animais não humanos e humanos?

Zaffaroni: No ano passado, publiquei um ensaio intitulado "Colonialismo e direitos humanos", no qual passava em revista os genocídios do colonialismo desde o século XV até a atualidade. Contam-se milhões e milhões de vítimas humanas, que a história contada a partir do Norte nos esconde, oculta, justifica ou, pelo menos, iliba. Só em 1948 é que os representantes dos nossos chefes de rebanho na ONU declararam que todos os seres humanos são pessoas. Somos uma espécie curiosa. Nunca vi uma assembleia de cavalos, cães ou gatos declarar que são todos cavalos, cães ou gatos; são precisos vários milênios e muitos milhões de mortos para o fazer. Mas, mesmo décadas mais tarde, um dos "evangelistas" do autointitulado "neoliberalismo", Ludwig von Mises, declarou que é um erro repetido acreditar que toda a gente tem algum direito só porque nasceu, e é citado como um sábio. De qualquer forma, aposto que não somos uma raça de antropoides suicidas, mesmo que alguns me considerem otimista por esta afirmação. Não acredito que "algo" nos tenha criado para nos suicidarmos coletivamente. O contrário seria acreditar que surgimos por um estranho acaso cósmico e que, por isso, poderíamos ser considerados algo como uma malformação maligna da natureza. Penso que não estaria errado se dissesse o contrário, mas, se estiver errado, tenho a vantagem de não ter ninguém para me censurar.

 Entrevista en español

Anterior
Anterior

Entrevista com David N. Cassuto