A atuação das Guardas Municipais sob a luz do Direito Animal
A proteção animal no Brasil tem assumido novos contornos nos últimos anos, impulsionada pelo recrudescimento do Direito Animal e pela maior sensibilidade social frente ao bem-estar dos animais. Conforme conceituado pelo Juiz Federal Vicente de Paula Ataíde Junior (2018), o Direito Animal é uma disciplina jurídica autônoma, positivada como “o conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos fundamentais dos animais não-humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ambiental ou ecológica”.
Nesse contexto, há um horizonte abrangente e inovador para atuação das Guardas Municipais. Enquanto órgãos de segurança pública municipal, as Guardas vêm ampliando suas atribuições para atender as demandas ligadas à proteção e ao bem-estar animal, colaborando com a aplicação de normas legais como a Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) e a Lei nº 14.064/2020 (Lei Sansão), que aumentou as penas para maus-tratos contra cães e gatos.
Esta análise, portanto, é um convite à reflexão e à discussão dos aspectos legais e teóricos sobre o papel dessas instituições municipais de segurança pública na perspectiva do Direito Animal, sem o intendo de se exaurir o tema, mas com vistas a ser difundido e considerado na elaboração de procedimentos operacionais e diretrizes municipais.
Embasamento jurídico e teórico
As Guardas Municipais têm como fundamento jurídico o artigo 144, § 8º da Constituição Federal de 1988, que as define como instituições responsáveis pela proteção de bens, serviços e instalações públicas municipais. Em um escopo mais amplo e atual, essa atribuição pode ser aplicada em casos de violação de direitos difusos e coletivos, incluindo os que envolvam animais em espaços públicos do município ou situações que requeiram a aplicação de políticas municipais de bem-estar animal.
Em 2014, a Lei nº 13.022 (Estatuto Geral das Guardas Municipais) regulamentou e organizou as guardas de todo o país, definindo como princípios mínimos de atuação a “preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas”, bem como o “compromisso com a evolução social da comunidade” (incisos II e IV do artigo 3º, respectivamente), dentre outros. Tais princípios vão ao encontro da doutrina jurídica do Direito Animal brasileiro, que, conforme versa o artigo 225, §1º, inciso VII da CF/88, incumbe ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”
Essa linha de pensamento traça um elo entre a regra constitucional da vedação à crueldade animal e os princípios mínimos das Guardas Municipais, cuja atuação busca, primordialmente, preservar a vida (em todas as suas formas), reduzir o sofrimento (de todos aqueles que sofrem) e se comprometer com as demandas sociais emergentes (inclusive àquelas relativas ao bem-estar animal). Além da vedação constitucional à crueldade animal, cabe considerar aqui também, com incontestável pertinência, o entendimento jurisprudencial sobre o sofrimento animal.
Conforme já positivado pelo Supremo Tribunal Federal, cujo marco histórico foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983 (ADIn da vaquejada), os animais importam por si só, independentemente de sua função ecológica e ambiental, conferindo não somente valor moral intrínseco ao sofrimento dos seres sencientes, como também valor jurídico à tutela dos animais, dotando-os, portanto, de dignidade própria. Em decorrência disso, tribunais brasileiros, em diversas instâncias, têm reconhecido os animais como sujeitos de direitos, um passo fundamental para uma proteção mais efetiva.
Dessa forma, toda ação humana que caracterize prática cruel aos animais, tipificada como crime de abuso e maus-tratos no artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais (ou mesmo segundo o artigo 3º do Decreto 24.645/1934, parcialmente vigente), viola o direito fundamental animal à existência digna e deve ser objeto de ações inibitórias, preventivas ou repressivas pelos órgãos de controle social. Nesta seara, as Guardas Municipais, enquanto garantidoras de prerrogativas, têm como atribuição primordial o poder-dever de prevenir, inibir e coibir infrações penais, buscando garantir a proteção sistêmica de todos os sujeitos de direitos que se encontram em seus territórios, o que inclui os animais.
Vale destacar que, ao romper paradigmas na segurança pública, a Lei nº 13.022/2014 ampliou o escopo de competências das Guardas Municipais, autorizando-as a colaborar na proteção ambiental do Município, inclusive adotando medidas educativas e preventivas, além de permitir o desenvolvimento de ações de prevenção primária à violência, conforme rezam os incisos VII e XVI do artigo 5º do referido diploma legal. Convém adotar aqui a proteção ambiental como via de acesso para as políticas públicas animalistas, dado que, embora o Direito Ambiental e o Direito Animal sejam disciplinas separadas e autônomas, ambas tratam da tutela jurídica dos animais não-humanos, seja como fauna ou como indivíduos dotados de dignidade própria.
No plano jurídico municipal, área de circunscrição das Guardas, as cidades tendem a concentrar suas leis e decretos na guarda responsável de animais domésticos, em normas sanitárias e de controle populacional de cães e gatos, além da regulamentação ou proibição de veículos com tração animal pelas vias públicas. Neste sentido, para além de estar preparadas para atendimentos a denúncias de maus-tratos, é imperativo que as Guardas Municipais também passem a integrar os comitês municipais de defesa animal, participando ativamente na construção de políticas e estratégias que visem a garantia dos direitos dos animais.
Ademais, determinados municípios ainda contam com o amparo legal de alguns estados que, assumindo postura mais vanguardista, já buscaram reconhecer expressamente os animais como sujeitos de direitos em seus Códigos de Proteção Animal. Assim, é possível que os agentes municipais também busquem maior respaldo para atuação em prol dos animais em legislações estaduais.
Atendimento aos casos de maus-tratos contra os animais
Seguindo o caráter preventivo e de manutenção da ordem social, as Guardas Municipais podem ser diretamente acionadas via 153 ou através das ouvidorias municipais para atender denúncias de maus-tratos, que, para além de agressões físicas, incluem também abandono, negligência, confinamento, condições sanitárias inadequadas, exposição ilegal à venda e até mesmo casos de tráfico. Neste tipo de abordagem, os agentes podem não apenas intervir diretamente na proteção dos animais, como também encaminhar os casos às autoridades competentes, como delegacias especializadas e órgãos de proteção. O objetivo é assegurar que os responsáveis sejam penalizados e que os animais recebam o cuidado necessário.
Ao receber a denúncia, os agentes precisam realizar uma avaliação preliminar, verificando a gravidade da situação, a veracidade das informações e o risco imediato ao animal. É essencial que os agentes coletem informações, imagens e depoimentos para documentar a ocorrência, garantindo legalidade no processo de apuração da denúncia.
Para nortear essa avaliação de bem-estar de um animal, os agentes podem se basear no preceito das cinco liberdades, estabelecidas em 1965 pelo relatório do Comitê Brambell, no Reino Unido. Em linhas gerais, as cinco liberdades podem ser descritas como:
Nutricional: leva em conta o escore corporal, acesso à água e à alimentação adequada;
Sanitária: considera a integridade física e o acompanhamento veterinário regular (vacinação/vermifugação);
Ambiental: avalia a proteção contra intempéries, frio e calor excessivos, superfície confortável para descanso e espaço para locomover;
Comportamental: analisa a oferta de condições propícias para o animal expressar o comportamento natural e o enriquecimento de estímulos cognitivos;
Psicológica: reflete o resultado da interação entre as liberdades, considerando um estado mental livre de medo e estresse.
A percepção, avaliação e documentação desses critérios poderão fundamentar um estado flagrancial de maus-tratos ou subsidiar investigações repassadas à polícia judiciária, bem como sustentar futuros desdobramentos judiciais.
Visando aprofundar ainda mais o tema, é pertinente também correlacionar aqui o atendimento a ocorrências de maus-tratos à teoria do Link, dado que a natureza de atuação das Guardas é essencialmente preventiva.
A teoria do Link estabelece uma conexão direta e cíclica entre a crueldade contra animais, a violência doméstica e o abuso infantil. Segundo essa teoria, indivíduos que cometem atos de crueldade contra animais têm maior probabilidade de se envolver em comportamentos violentos contra pessoas. Essa relação baseia-se em estudos que apontam que o abuso de animais frequentemente ocorre em ambientes onde outros tipos de violência estão presentes.
Desse modo, a apreciação desta teoria oferece uma perspectiva mais ampla de atuação. Ao atenderem uma denúncia de maus-tratos, os agentes podem estar diante de sinais de outras formas de violência no ambiente. Por exemplo, uma casa onde há animais sendo maltratados pode ser o cenário de violência contra crianças ou parceiros. Assim, o resultado de uma atuação mais cautelosa e atinente a este tipo de situação poderá ser mais abrangente ao ser levado ao conhecimento das autoridades competentes, servindo como ponto de partida para a identificação e prevenção a outros possíveis crimes, interrompendo ciclos de violência.
Patrulhamento preventivo, espaços públicos e proteção dos animais
Além do atendimento a denúncias, os agentes podem também se deparar com situações de maus-tratos durante ações de patrulhamento preventivo nas instalações municipais, principalmente em áreas verdes e parques, haja vista que são locais visados para a prática delituosa de abandono de animais.
Apesar do verbo “abandonar” não estar tipificado na norma que criminaliza os maus-tratos (artigo 32 da Lei nº 9.605/1998), há outros instrumentos jurídicos e normativos que fazem referência expressa e podem embasar o conceito, como o Decreto Federal 24.645/1934, a Resolução nº 1.236/2018 do Conselho Federal de Medicina Veterinária e em determinados estados cuja conduta de abandonar foi arrolada como maus-tratos nos Códigos de Proteção Animal.
O trabalho preventivo também se aplica às feiras organizadas em logradouros públicos onde possa haver comércio ilegal de cães e gatos. Assim, além de ter ciência sobre o que legalmente se estabelece na regulamentação municipal sobre o comércio de animais, é necessário ter ações articuladas junto aos fiscais de postura do município para, se caso for, tomar providências mais resolutivas. Dessa forma, em uma mesma ação, o infrator poderá receber tanto uma sanção criminal quanto administrativa.
Outro ponto deveras sensível de ser tratado, embora de genuína pertinência, é a utilização de espaços públicos para realização de rituais com sacrifício de animais em cultos de religiões de matriz africana. Intenta-se aqui não debater o tema em si, mas discutir o embasamento e a legitimidade para a atuação das Guardas Municipais frente a tal situação, uma vez que os agentes podem se deparar ou ser acionados pela população. Legislações que tratam com do tema com profundidade ainda são escassas, portanto, cabe aqui considerar o plano jurisprudencial que abordou a matéria diretamente.
Conforme o acórdão proferido no Recurso Extraordinário nº 494.601 de 2019, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de que é constitucional determinado dispositivo introduzido no Código Estadual de Proteção aos Animais do Rio Grande do Sul, no qual foi considerado que não se enquadra como prática cruel o sacrifício de animais em cultos e liturgias das religiões de matriz africana. Com base nisso, o atual entendimento é que, desde que não haja crueldade, o sacrifício de animais nessas situações não configurará maus-tratos.
Portanto, é fundamental que os agentes tenham protocolos claros e orientações específicas para garantir uma atuação legitimada e que assegure direitos fundamentais, como a liberdade religiosa, sem que, para isso, haja conflito com o Direito Animal.
Exemplos de atuação das Guardas Municipais no Direito Animal
Relacionam-se aqui alguns casos práticos que exemplificam a atuação das Guardas Municipais à luz do Direito Animal. Em Piracicaba (SP), o Setor de Direito Animal da Guarda Civil Municipal foi criado em 2021 para lidar diretamente com denúncias de maus-tratos e abandono de animais. De acordo com dados da Prefeitura, o setor atendeu centenas de denúncias nos primeiros anos de funcionamento, com enfoque em educação e conscientização dos tutores.
Outro exemplo relevante é a Patrulha de Proteção Animal (PPA) de Curitiba (PR), que realiza ações conjuntas com a Rede de Proteção Animal, resgatando animais vítimas de maus-tratos e promovendo campanhas educativas. Entre os atendimentos mais comuns estão o combate ao comércio ilegal de animais e o resgate de animais abandonados em áreas públicas.
Desafios para consolidar a atuação
Apesar dos avanços, a atuação das Guardas Municipais ainda enfrenta limitações normativas e ausência de protocolos operacionais. Ademais, para que possam consolidar uma atuação clara no Direito Animal, é essencial destacar a capacitação continuada dos agentes. Cursos e treinamentos sobre legislação animalista, manejo de animais e técnicas de resgate podem ampliar a eficiência e segurança das operações.
Outro elemento-chave é a articulação interinstitucional. No que se refere ao recebimento de animais vítimas de maus-tratos, o estabelecimento de Termos de Parceria e Cooperação podem ser firmados com faculdades, clínicas veterinárias e ONGs que manterão os animais custodiados, recebendo todos os cuidados necessários até destinação definitiva.
Além disso, a sensibilização da sociedade é crucial para garantir a efetividade das ações. A participação em campanhas educativas e de adoção voluntária podem fomentar o reconhecimento das Guardas Municipais enquanto agentes atuantes no Direito Animal, além de estimular a população quanto à guarda responsável e incentivar o direcionamento de denúncias de maus-tratos.
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Referências bibliográficas
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