Quem tem medo de lobo bom?

Em vários povos, desde muito tempo, as estórias eram contadas, oralmente, conforme os costumes da época. Podemos recordar que, em muitas estórias infantis, há personagens humanos interagindo com personagens animais, como em Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau. 

A primeira versão escrita de Chapeuzinho foi em 1697, na França, por Charles Perrault (1628-1703). Ele também escreveu A Bela Adormecida e O Gato de Botas, entre outras. Em 1812, na Alemanha, os Irmãos Grimm, relançaram estas estórias e publicaram outras como Cinderela, as quais ficaram famosas pelos estúdios de Walt Disney. Em muitos casos, os lobos são malvados e perigosos. 

No conto de Chapeuzinho Vermelho, temos um lobo solitário, astuto, inteligente, que engole a vovozinha por inteiro, veste-se como ela, criando um disfarce, e aguarda para fazer o mesmo com a garotinha. 

Ao ser atacada, Chapeuzinho grita por socorro e aparece um caçador para salvá-la. Abre a barriga do animal e retira a velhinha viva. Nas primeiras versões, o lobo é morto, nas mais recentes, foge pela janela. E a menina sai cantando: “Quem tem medo de lobo mau (...).”

Os lobos europeus medem em torno de 1,5 m de comprimento e possuem 85 cm de altura. São inteligentes, vivem em matilhas e caçam em grupo, não sozinhos como cita a estória. São carnívoros, e humanos não fazem parte do seu cardápio. Ao atacarem sua presa, tiram lascas de carne e assim todos dividem o alimento. Então, como poderia ter engolido a senhorinha inteira, e ela sair viva daquela barriga peluda! 

Se a intenção era amedrontar as crianças, faz sentido. Me lembro que, quando pequena, tinha pavor de passar no bosque do Horto Florestal com receio do lobo. Felizmente isso passou! Tenho mais medo é de humanos.

Em outra estória “Pedro e o Lobo”, temos a imagem de um lobo solitário e predador de animais de criação. Lançada em 1936, pelo compositor russo Serge Prokofiev (1891-1953), esta obra foi composta com objetivo de ensinar música para as crianças. E para ensinar que não se deve brincar com o perigo, nem desobedecer aos mais velhos.

O garoto Pedro desejava ser um grande caçador. Ele é alertado pelo avô para se manter longe da floresta, pois havia um lobo feroz. Crendo-se muito corajoso, disposto a enfrentar o animal desobedece ao avô, e sai acompanhado por uma pata, um passarinho e um gato. Cada personagem era representado por um instrumento musical.

O lobo os encontra e ataca os animais de estimação. Quando tudo parecia perdido, surgem os caçadores para salvá-los, matando “o bicho feroz”. Nas versões recentes, é levado para a aldeia em cativeiro.

Temos aqui uma referência ao lobo eurasiático, uma subespécie do lobo cinzento da Europa Ocidental, que habitava naturalmente, zonas de florestas e estepes dos países da Europa Oriental, antiga União Soviética e norte da Ásia. Sim, é fato que foram muito caçados por alimentarem-se de ovelhas e outros animais de criação. E sua pele era usada para fazer casacos e cobertores.

O grande educador e santo homem, Francisco de Assis (1181/1226), ensinou como os homens deveriam aprender a interagir com respeito aos animais, incluindo os lobos (Franciscanas, 2016). 

Na cidade de Gúbbio, Itália, região montanhosa, havia um lobo que rondava as propriedades para caçar galinhas e ovelhas, chegando a atacar as pessoas que vinham protegê-las. Havia uma onda de pânico generalizada e queriam matá-lo.

Francisco, em visita ao povoado soube o que se passava, e foi ao encontro do animal. Conversou com ele, propondo um acordo de paz: as pessoas ofereceriam alimento para saciar sua fome, e ele não mais atacaria. Trato feito, o Protetor dos Animais retorna à cidade, acompanhado de seu novo amigo, para surpresa geral dos cidadãos. Pediu então a cooperação de todos.

Mas, o antropocentrismo predominou. 

Da Idade Média até o Século XX, o número de lobos diminuiu absurdamente, levando à extinção algumas espécies. Analisando pela ótica ecossistêmica, temos a espécie humana, topo da cadeia alimentar, lutando pela proteção da sua prole, de seu território e de seu alimento, por sentir-se ameaçada por outra espécie de animal, também predador, competindo por espaço (território), porque suas presas estavam cada vez mais escassas no seu habitat.

Com o desflorestamento intenso para expansão das cidades e para agropecuária, os territórios dos lobos foram amplamente impactados na Europa, Ásia e América do Norte. 

Some-se a isso, os movimentos liderados por fazendeiros para o abate insano de inúmeros animais para proteger suas terras, mais os grandes incêndios florestais e as rodovias em áreas rurais, onde centenas de animais são atropelados. Isto se perpetua até meados do Século XXI, onde nos encontramos. Será que a crença do “Lobo Mau” foi assimilada geneticamente?

Em muitos países, há biólogos e médicos veterinários estudando os lobos, na vida selvagem e em cativeiro, propondo medidas protecionistas e leis específicas para protegê-los e aos territórios onde vivem.

Pesquisadores descobriram que estes canídeos possuem funções importantes na teia alimentar, no ecossistema onde vivem, entre elas, o de regular as populações de suas presas, como as renas e cabras das montanhas, e adubar o solo de áreas áridas com suas fezes. E, eles têm muito a nos ensinar sobre alegria, empatia, cooperação e organização social (Bekoff, 2010).

Lembram daquele desenho da Disney: Mogli – o Menino Lobo? Conta a estória de um bebê humano, que é acolhido e amamentado por uma loba, como um dos seus filhotes, adotado pela matilha, em uma floresta na Índia.  Mito ou realidade?

Em 1894, o escritor Rudyard Kipling, que viveu na Índia, publicou o Livro da Selva (The Jungle Book – em inglês), baseado em um caso real: um menino que viveu na floresta criado por lobo asiático (Choudhury, 2021).

Quando estava com aproximadamente seis anos, em 1897, por acaso, Mogli foi encontrado por caçadores (de tradição europeia). Acreditando que os animais haviam matado seus pais humanos, atiraram nos lobos e levaram o garoto para a cidade, em um orfanato de padres. 

Apesar dos esforços dos professores e médicos, ele não aprendeu a falar e a se comportar como humanos, até seu falecimento, com 29 anos. Outro “menino lobo” foi encontrado na floresta e levado para este orfanato (Marin, 2023). 

Curioso é perceber, que os escoteiros são chamados de “Lobinhos” quando jovens e Lobos, quando adultos, tendo como referência a história de Mogli, desde sua criação em 1907 na Inglaterra. E, no Brasil, a partir de 1924 (Escoteiros do Brasil, 2023).  

No território brasileiro não há Lobos Cinzentos ou Lobos Vermelhos, mas a crença no “Lobo Mau” insiste e persiste, trazida pelos imigrantes europeus. Há o lobinho, mais conhecido como Cachorro do Mato (Alves, 2019), e o Lobo Guará, que iremos abordar. Destacamos que não existe registro de ataque à humanos por este ser.

Símbolo da nota de 200 reais, o Lobo Guará é um animal tímido, de pelo amarronzado, pernas finas, hábitos noturnos. Habita os biomas de Mata Atlântica, Cerrado, Pantanal e Pampas, incluindo Peru, Bolívia e Paraguai. 

Vive sozinho (com exceção do período de acasalamento e cuidado da prole), alimenta-se de pequenos roedores, aves, insetos e, principalmente de frutos. Inclusive há uma fruta no cerrado denominada “lobeira” por ser sua favorita. 

É uma espécie considerada ameaçada de extinção. As ameaças são as mesmas que seus parentes norte americanos e europeus sofreram e sofrem. 

A imagem de vilão se perpetua. Inclusive em zoológicos, onde pais e professores apontam o Lobo Guará, dizendo: “olha lá o lobo mau que atacou a vovozinha do Chapeuzinho Vermelho”.

Objetivando ressignificar esta crença de Lobo Mau que ataca galinhas e criancinhas, profissionais de biologia, zoologia, veterinária, pedagogia e de letras, entre outros, estão desenvolvendo interessantes atividades didáticas, lúdicas e de ecoturismo com estudantes de magistério, jovens e adultos sobre o inofensivo Lobo Guará (Travi, 1992, Neves, 2021, ICMBio, 2021, PMDF, 2018).

Inclusive, este tema foi uma das questões do Exame Nacional de Ensino Médio – ENEM de 2022.

Sendo assim, as novas gerações, mais amadurecidas, compreenderão que os animais são bons, que podemos conviver em harmonia, e que devemos respeitá-los ao invés de exterminá-los.

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Referências bibliográficas

Alves, M. Cachorro do mato é um animal selvagem de hábitos solitários. 20.06.2019. Disponível em: Cachorro do mato é um animal selvagem de hábitos solitários (agro20.com.br). Acessado em 07.01.2024.

Bekoff, M. A Vida Emocional dos Animais. Tradução Denise Delela. Ed. Cultrix. 2010.

Choudhury, S. A real história de Mogli. Disponível em:  This is The Real-Life Mowgli. The story from Jungle Book isn’t 2021. Acessado em 07.01.2024.

Escoteiros do Brasil. Lobinhos. Disponível em:  Ramo Lobinho - Escoteiros do Brasil 2023.  Acessado em 07.01.2024.

ICMBio. Plano de Ação Nacional para a Conservação do Lobo-guará, 2021. Disponível em: Pan Lobo-guara — Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (www.gov.br). Acessado em 07.01.2024.

PMDF. Programa de Educação Ambiental Lobo Guará do Batalhão de Policiamento Ambiental da PMDF, 2018. Acessado em 07.01.2024.

Marim, J. Mogli: conheça a trágica história real que inspirou os filmes | Minha Série (tecmundo.com.br) 2023. Acessado em 07.01.2024.

Neves, A.  LOBO-MAU: O MALANDRO DOS CONTOS DE FADAS (1library.org). 2021 Acessado em 07.01.2024.

Travi, V.H. Projeto LoboGuará Educação Ambiental. 1992. Disponível em: https://www.projetoloboguara.com.br/ Acessado em 07.01.2024.

IRIS FERNANDES POFFO

Bióloga com doutorado em Ciências Ambientais pela USP/SP. Pós doutorado em Psicologia pela PUC/SP. Terapeuta holística. Escritora.

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